21/05/2014

Sed Contra - Tavares ainda não perdeu o emprego


Quem quer que abra, por vontade própria ou decreto providencial, um livro de Gonçalo M. Tavares, dá com a vista naquilo a que, literariamente falando, se chama uma surpresa. Sossegue quem tiver aprendido a pensar, pois ainda não disse se é boa ou má a surpresa com que dá quem assim opera. Nem o poderia talvez dizer, pois que, de um certo ponto de vista, pode ser bem surpreendido aquele que der com o espanto em má surpresa. Ora, quem quer que abra, pondo o intuito em ler, um dos livros por que Gonçalo M. Tavares foi surpreendendo o exigentíssimo público pátrio, Matteo perdeu o Emprego, tem forçosamente de abri-lo, como abriria qualquer outro livro, na primeira página. Se tiver a gentileza de fazê-lo, pode não reparar em muita coisa, mas decerto repara nas letras que lá se timbraram. Pode, por isso, não depositar suspeitas na hipótese de o escritor, desconhecendo as ínclitas leis da profissão de escrever livrinhos, não saber que um parágrafo pode conter mais do que um período, como o faz quem sabe o que há a ser feito, mas é com certeza capaz de ler, porque está lá para ser lido por quem tiver olhos e educação primária, o seguinte parágrafo:

Todas as manhãs, um homem era visto, entre as sete e as sete e meia, a contornar a rotunda principal da cidade, rotunda onde desembocava sessenta por cento do tráfego. Às sete da manhã o fumo dos automóveis era maior que ao fim da tarde, porém, mesmo assim, havia fumo, metal e ainda a velocidade de alguns automóveis. E ali, no meio, correndo risco de vida, um homem. Aaronson.

 Como falar do estilo de um escritor é, muitas vezes, tão estéril quanto falar da higiene de qualquer homem ou mulher, havendo naturalmente quem goste muito e quem goste pouco de banho, abstenho-me de comentar a abolição estilística dos dois pontos na última frase. Se é perdoável, ainda que malcheiroso, o descuido da cerimónia de lavar as partes antes de sair de casa, não o é, porém, o andar indecorosamente pelas ruas a mostrá-las; se, por um lado, as debilidades a pontuar o que escreve não chegam para que se diga que é débil o que debilmente pontua, as debilidades sintácticas que neste parágrafo o debilitam, por outro, são suficientes para que se surpreenda quem acha que os escritores são pessoas que sabem escrever. Não me explico bem. Se faltasse apenas a Gonçalo M. Tavares o bom senso de usar a pontuação que deve ser usada em cada ocasião, como acontece quando, para indicar o nome do homem de que falara antes, não dá uso aos dois pontos, faltar-lhe-ia pouco para ser o que pensam que é. Surpreendentemente, não é isso, contudo, que mais falta àquilo que escreve.
Contendo a frase central do parágrafo duas ideias, a ideia de que há mais fumo de manhã do que à tarde e a ideia de que havia fumo naquela manhã, decidiu Gonçalo M. Tavares ligá-las, como o faz, de resto, qualquer escritor que saiba escrever. Para esse fim – e aqui começa a surpresa –, transformou-as não em duas orações, mas em três. Nada sovina a respeito de conectores, juntou-as então o escritor quer por coordenação, através da conjunção adversativa “porém”, quer por subordinação, ao fazer depender, dentro da segunda oração coordenada, a oração subordinada concessiva “mesmo assim” (a locução concessiva comporta-se como uma oração inteira, pois subentende a expressão de carácter concessivo “mesmo que houvesse mais fumo de manhã do que à tarde”) da oração subordinante que se lhe segue. A generosa transformação de duas ideias em três orações não é insólita, contudo, apenas por razões numéricas; nela se evidencia, insolitamente também, que Gonçalo M. Tavares não só não tem jeito para economizar, complicando com três orações o que deveria ter simplificado em duas, como não parece saber, pela hesitação entre os dois modos de articular pensamentos, que a natureza da relação entre duas orações ligadas por uma conjunção coordenada, como seja a adversativa “porém”, é profundamente diferente da natureza da relação entre orações ligadas por uma conjunção subordinada.
Para dissolver a hesitação do escritor – se é que é possível desculpar-lhe a falha diagnosticando uma hesitação – basta que se perceba que as duas ideias a que quer dar conexão têm necessariamente de ser ligadas por subordinação e não por coordenação, pois que a primeira ideia depende da segunda. Que haja mais fumo de manhã do que à tarde, aquilo a que a primeira das orações coordenadas dá grito, não é contrário a haver algum fumo naquela manhã, aquilo de que fala, no fundo, a segunda: a primeira ideia compara duas condições, o fumo que há de manhã com o fumo que há de tarde; a segunda verifica uma evidência, a de que havia fumo naquela manhã. Como comparar não é o contrário de verificar, nem mesmo num dos mundos sobre os quais Gonçalo M. Tavares parece gostar de escrever, nenhuma conjunção adversativa poderia ligar satisfatoriamente as duas ideias. Tais ideias não só não são contrárias como não são passíveis de coordenação, pois a comparação em que consiste a primeira depende logicamente da verificação que ocorre na segunda. Havendo talento em quem escreve, facilmente se subordinaria a ideia de que há mais fumo de manhã do que à tarde à ideia principal, que é a de que, naquele momento, havia algum fumo. E essa subordinação é, claro está, concessiva, como de algum modo terá intuído Gonçalo M. Tavares, ao sentir a necessidade de unir as duas orações subordinadas em que separou a segunda das orações coordenadas através da locução subordinada concessiva “mesmo assim”. A frase que queria escrever e que não escreveu, por não saber manusear devidamente a língua que tem por sua, era a seguinte:

Embora às sete da manhã o fumo dos automóveis fosse maior que ao fim da tarde, havia fumo, metal e ainda a velocidade de alguns automóveis.

Assim se percebe, irrefutavelmente, que a cabeça de Gonçalo M. Tavares é dada à hipotaxe, mas que a língua e as mãos, desobedecendo à cabeça no momento de verbalizar o que lá vai dentro, preferem a parataxe. O que resulta não é nem a sensibilidade literária de um adulto perfeitamente capaz de articular duas ideias que dependem uma da outra, nem a de uma criança que, como criança que é, ainda não adquiriu a capacidade notável de subordinar algumas das ideias esparsas que vai tendo. A avaliar pelo exemplo, a voz autoral de Gonçalo M. Tavares atraiçoa quem por ela tem sido premiado; as peculiaridades que fazem dele o escritor que é fazem também do escritor que é um escritor a quem falta saber escrever quer como o adulto que é, quer como a criança que se aceitava que fingisse ser. Assim se demonstra, portanto, que não sabe o que faz.
Não obstante o problema com as orações ser, porventura, o mais grave, outras debilidades há que merecem a nota. Não sendo o fumo coisa que possa ter dimensão ou tamanho, é de todo errado qualificá-lo recorrendo ao adjectivo “grande” (neste caso, no grau comparativo de superioridade: “maior que”). Quando muito, pode a quantidade de fumo, não o fumo em si, ser maior. Da mesma maneira, não é a água contida num bacio que é maior que a água contida noutro bacio mais pequeno, mas a quantidade de água que nele se contém. Ora, a simples substituição de “maior que” por “mais que” não resolve o problema, uma vez que o verbo copulativo “ser” requer o adjectivo e não o advérbio. Daí que, para que a frase fique certa, como deveria ter ficado, caso tivesse sido escrita por quem a soubesse escrever, ou o sujeito ou o predicado da primeira oração tenha de ser modificado. Duas são, então, as soluções possíveis:

Embora às sete da manhã a quantidade de fumo dos automóveis fosse maior que ao fim da tarde, havia fumo, metal e ainda a velocidade de alguns automóveis.

ou

Embora às sete da manhã houvesse mais fumo que ao fim da tarde, havia fumo, metal e ainda a velocidade de alguns automóveis.

Já que a segunda evita um sujeito demasiado comprido e que o verbo “haver”, aliás usado na segunda oração, confere à frase maior substância, parece inegável que é ela a melhor solução. E ficaria a frase deste jeito, não fosse o infortúnio de Gonçalo M. Tavares ter errado em mais um aspecto. Distraído pela sintaxe desajeitada em que é dito o que se diz, não repara quem lê que estipulara a frase anterior que é de manhã que a acção ocorre. Se é de manhã que tudo se passa e se é intenção da frase indicar que àquela hora há algum fumo no ar, ainda que não seja a altura do dia durante a qual há mais fumo, não pode ser de manhã que há mais fumo, mas de tarde. A implicação é óbvia: é necessário voltar a corrigir o ilustríssimo escritor. A frase correcta, aquela que Gonçalo M. Tavares gostaria de ter escrito e que, fosse ele escritor e estivesse ele fadado para escrevê-la, teria escrito sem dificuldades, era então a seguinte:

Embora às sete da manhã houvesse menos fumo que ao fim da tarde, havia fumo, metal e ainda a velocidade de alguns automóveis.

Ou se, além de ser escritor, possuísse o bom gosto pelo qual alguns se distinguem:

Embora às sete da manhã não houvesse tanto fumo quanto ao fim da tarde, havia algum fumo, metal e até a velocidade de alguns automóveis.

Acabo como havia começado: abrir um livro de Gonçalo M. Tavares é como desembrulhar um presente em dia de aniversário. É-o não no sentido trivial de que o que vem dentro do embrulho, mesmo que bugiganga, é qualquer coisa que se ganha, mas na medida em que abri-lo provoca sempre alguma surpresa. Como ficou demonstrado, a surpresa consiste, neste caso, no sobressalto de aprender que há escritores que não sabem escrever. Há certas coisas que, mesmo aqueles que, por acidentes da vida, não frequentaram o liceu ou nem sequer sabem o abecedário, têm por certas, como seja a de não haver fogo que não seja quente e não queime. Se me fosse permitido filosofar numa frase, diria que há substâncias em cuja definição se incluem necessariamente alguns dos seus atributos. Tal como não pode conceber-se um fogo frio ou um fogo que não arda, é inconcebível um sapateiro que não saiba fazer sapatos ou um matemático que não saiba fazer contas. Mais do que serem características de quem é sapateiro ou matemático, o saber fazer sapatos ou o saber fazer contas é aquilo que define os respectivos ofícios.
Só conheço um termo para caracterizar um sapateiro que não saiba fazer sapatos, um matemático que não saiba fazer contas, ou, abandonando agora as utilíssimas comparações com quem mexe em graxa e compassos e regressando ao caso concreto de Gonçalo M. Tavares, um escritor que não saiba escrever. Só conheço – ia a dizer – um termo capaz de justificar cada uma destas possibilidades, mas não há modo de empregá-lo que não envolva o negócio de trocar fatalmente, como Fausto oferecendo a alma, os escrúpulos lógicos pelas maravilhas do vocabulário religioso. Falo, obviamente, da palavra “milagre”, que serve para designar qualquer fenómeno extraordinário, como bem sabe quem souber alguma coisa, durante o qual se registe a suspensão momentânea de toda e qualquer lógica. Tal como “quando na Cruz o Filho de Maria amostrando-se a Afonso o animava”, é portanto com a animação do milagre de haver afinal escritor que não sabe escrever que dá quem quer que abra um livro de Gonçalo M. Tavares. Fechá-lo de imediato é ipso facto indecência e heresia, a menos que, pela indecência de ser decente, se tenha recusado o leitor a negociar os escrúpulos com o diabo. Nessas circunstâncias excepcionais, enjeitar milagres talvez seja sensatez.
 

Sem comentários: