29/12/2013

Qui Sumus (1)



Conheci o Álvaro da Horta, leitor curiosíssimo, numa festa cujas incidências mereciam sem dúvida um livro dado à estampa. Acontecia que, esperando por dar ganso ou lampreia à barriga, dei por mim entediado a escutar o professor Benguela Fazendeiro. Entre a linguística dura que o homem arrotava e um ou outro arroto por conter, de que de imediato, mostrando maneiras, se desculpava, não imagina quem me leia o interesse com que lhe seguia as frases a dezena de pasmados que ali tinha sido trazida não pelo cheiro a couves da eructação mas pela mercê inesperada de privar com o intelectual. Como estava ali menos pela prelecção e mais pelos rissóis que não chegavam, dei paciência ao apetite e fui ouvir o silêncio do outro lado da sala. Contou-me o Álvaro mais tarde que, no preciso instante em que eu me aproximava, bocejando, do pequeno grupo para o qual ele fora arrastado só pela cortesia de ali estar, alguém dizia, julgando citar o Antero, que depois da morte há escuridão e silêncio – e nada mais. Espreitando pela fechadura das memórias que guardo dessa noite, não me recordo – juro pelo Cão – que se tenha realmente debatido tão grave assunto. O Álvaro, como é seu hábito, não se metia em nada que não fosse matéria de letras, mas garante que dois fariseus, se não mesmo três, por pouco não andavam à pancada para ver quem tinha razão a respeito da metafísica. Verdade ou não, não posso negar que as primeiras palavras que ouvi o Álvaro dizer, em jeito de chalaça e despertando-me de dentro de mim, foram as seguintes: “vina dabant animos”.