27/08/2015

Res Scriptae - O Demónio Erudito


Certa vez, numa aldeia católica germânica, uma rapariga de vinte e quatro ou vinte cinco anos, que não sabia ler nem escrever, foi acometida por um delírio nervoso durante o qual, de acordo com o testemunho de todos os padres e monges da região, foi possuída pelo que parecia ser um demónio muito erudito. É que falava incessantemente em latim, grego e hebraico, com um tom muito pomposo e a mais distinta das dicções. A possessão tornou-se ainda mais provável depois de se saber que ela era, ou tinha sido, herege. O caso atraiu a atenção particular de um jovem médico, e, a seu pedido, muitos fisiologistas e psicólogos eminentes visitaram a aldeia. Dando em anotar aquilo que ela dizia, descobriu-se que eram frases coerentes, embora sem ligação umas com as outras. Do que dizia em hebraico, foi possível identificar na Bíblia apenas uma pequena porção; o resto parecia estar num dialecto rabínico. Determinado a encontrar uma resposta, o jovem médico decidiu investigar o passado da rapariga. Descobriu onde os pais dela, agora mortos, tinham vivido e soube por um tio dela que, com nove anos de idade, fora caridosamente acolhida por um pastor protestante, tendo vivido em sua casa vários anos, até à morte deste. Com muitas dificuldades, o jovem médico descobriu uma sobrinha do pastor, que vivera em casa dele e que se lembrava da rapariga. Depois de indagados os hábitos do pastor, que entretanto soube que era muito erudito, descobriu que costumava andar pela casa a ler em voz alta certas passagens dos seus livros favoritos. Muitos desses livros ainda estavam na posse da sobrinha. Entre eles, havia uma colecção de escritos rabínicos e vários de autores gregos e latinos. O médico conseguiu identificar tantas passagens dos livros que abriu que nenhuma dúvida poderia restar acerca da verdadeira proveniência das impressões fixadas no sistema nervoso da rapariga.

tirado de: Bibliographia Literaria,
Samuel Taylor Coleridge

17/08/2015

Sed Contra - A Criança Tolinha (3)


Tendo ficado demonstrado, nos dois textos de que este é conclusão, que Herberto Helder está para a poesia como um marinheiro a quem não explicaram o que é marinhar está para a marinhagem e como um adolescente a quem não explicaram o que é adolescer está para a adolescência, falta agora tornar claro de que modo esta criança tolinha, não obstante nunca ter aprendido a marinhar nem ter realmente adolescido, deu em ser marinheiro e adulto respeitado. Por outras palavras, falta explicar por que motivos não é crueldade nem deselegância achar, como o achará quem souber o que é justo achar, que nem o facto de Herberto Helder ter nascido na Madeira lhe desculpa a dicção entaramelada. É hora, por isso, de olhar com atenção, de preferência sem o coração amargurado nem a alma condoída com que olham todos os que se emocionam ao olhar, para o poema central do seu primeiro volume de poemas e, possivelmente, da sua obra completa.

05/08/2015

Res Scriptae - Aristides e Temístocles





O estadista e general ateniense Aristides, o Justo, foi enviado em embaixada com o general Temístocles, de quem não era amigo, e sugeriu que os dois pusessem de lado a inimizade na fronteira da Ática. “Ao voltarmos, se nos apetecer” – disse ele – “podemos retomá-la”.
                           
tirado de: Greek Wit: a Collection of Smart Sayings and Anedoctes translated from Greek Prose Writers