Parece que as Humanidades vão regressar. Quem o diz é a organização do
colóquio a acontecer nos dias 30 e 31 de Outubro (ontem e hoje) na Faculdade de
Letras. De onde regressam as Humanidades, por que meios o fazem e por que
motivos se ausentaram é aquilo que – imagino – tal encontro visa esclarecer. Que
as Humanidades não sejam pessoas e, como tal, não sejam capazes de emigrar para
fazer pela vida, regressando mais tarde para gozar a velhice, parece tão
evidente quanto irrelevante para o caso: se não têm pernas nem vontade para
voltar das Franças, alguém as trará às costas, com certeza. Daí que averiguar
os motivos por que regressam se faça pela averiguação dos motivos por que as
trazem às costas quem assim as faz regressar. As Humanidades regressam pois do
estrangeiro, às costas do desterrado que regressa a casa depois de muitos anos
de desterro, como farnel em vara com que dar peso ao papo pelo caminho, e apenas
porque aquele que as traz não podia regressar sem as trazer, sob pena de não
ter como alimentar a barriga e a boa intenção de voltar à pátria.
Falar do regresso das Humanidades é, portanto, falar dos humanistas que
regressam a mastigar-lhes as carnes e que, sem pano a que possam limpar as mãos
depois da refeição, chupam os dedos lambuzados. O colóquio que anunciam não é,
por isso, senão repasto; juntar-se-ão numa sala não para falar do regresso das
Humanidades, mas para comê-las. Uma vez que estarão presentes no banquete
alguns dos ilustres que se reuniram há alguns meses para discutir a urgência
que há na literatura, e uma vez que a gente que discute tais assuntos, como
comprovado pelo raciocínio exemplar que tive a oportunidade de garatujar na
altura, é gente que, como crianças a brincar aos médicos ou tarados a apalpar
corpos alheios, tem por regime predilecto um em que é mais digno de honrarias
quem lê muito do que quem lê pouco, é admissível que não saia de lá o correligionário
que lá for sem entender que quem afinal regressa é El-Rei D. Sebastião.
Pessoas que se reúnem à volta de mesas, com a louça régia e os talheres de
prata à frente, para discutir a urgência ou o regresso das letras, são pessoas
a quem interessa menos as letras, que aliás não servem senão para dar sossego à
fome, do que a possibilidade de encaminhar para o cadafalso quem não tem por elas
o mesmo apetite. Com o regresso de El-Rei D. Sebastião, regressa a
possibilidade de exercerem a vocação de verdugo cuja extinção têm lamuriado desde
que se decretou, para pasmo geral de toda esta fidalguia desterrada, que nobre
e ignóbil não são qualidades que se determinem por comparações sanguíneas.
Assim se compreende o entusiasmo com o evento. Saudosos da vida da corte, do
arminho aos ombros dos monarcas a quem deviam o beijo nos anéis, do convívio
com os príncipes e as princesas e da boa opinião sobre eles a que os obrigava o
preço a que amizade lhes era vendida, dos bailes grandiosos e dos salões de
dança, das tapeçarias persas e das mais distintas iguarias, mas incapazes de
aceder ao interior movimentado dos palácios em que tudo isto acontece, travados
às portas pela guarda-real da pulsão igualitária hodierna, resta-lhes assumir o
papel do bobo que, de maneira a poder privar com famílias reais, não se importa
de ganhar a vida a proferir disparates, a contar chalaças e a fazer piruetas no
ar. As Humanidades a que este encontro se reporta são, pois, o alvará de bobo com
que acautela a vizinhança aristocrática quem celebra o regresso delas, e quem
quer que mereça a pouca sorte de lá ir ver passar licenças para ser parvo com
certeza sairá de lá mais histrião do que entrou.
2 comentários:
Raciocínios lógicos correctos não são o mesmo que pensamento, maledicência não significa sentido crítico e estilo pomposo não deve ser confundido com literatura. Quando o autor perceber estas diferenças pode ser que comece a escrever alguma coisa de jeito. E isto serve para outros textos e autores neste blogue.
A receita para começar a escrever coisas de jeito passa então por deixar de fazer raciocínios, melhorar a educação e abandonar o estilo. Para escrever coisas de jeito, portanto, é preciso ser tolinho, concordar com os disparates de toda a gente e escrever como quem fala. Muito obrigado pelas recomendações, mas já tinha percebido em que consiste um escritor contemporâneo e nunca tive vontade de ser assim.
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