18/12/2014

Ad Hominem (2) - Gonçalidades


GONÇALIDADES

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar as vozes mais banais.
Incrível! Já rasguei ao todo três jornais
Enfurecidamente.

Dói-me a cabeça. Arranco dela alguns cabelos:
Que bem se diz do mau professor de ginástica!
Aclamam-lhe os enredos e a dicção fantástica.
Quanto a enganos, nem vê-los!

Sentei-me à secretária… Ali defronte engoma
A camisa ao marido, não deixando um vinco,
Uma esposa esmerada já com netos cinco.
Tem hoje um hematoma…

Ingénua aposentada engomando a preceito!
Tão cândida! O marido engana-a. E ela dança.
Não tem inclinação para a desconfiança…
Nem para cauta o jeito.

Serão senhoras tontas assim, certamente,
E outra gente que tal, bem fácil de enganar,
os úberes de mãe por que engorda a chuchar
Quem quer que escrever tente.

Que mau humor, o meu! Tivesse eu obra-prima
Pronta a ir para o prelo! O que ouviria então?
“Gratos pelos papéis! São bons… para carvão!”
Mal empregue Hiroshima!

Que luto humanitário lhes dispensaria,
Se desaparecessem? Desfilam em corso
Toda a defunta vida. Não valem o esforço
Da mínima honraria.

O Gonçalo não gosta de advérbios de modo.
O que é que há, pois então, no Eça que lhe agrade?
O bigode? O monóculo? O chiste? Quem sabe?
Bravata de rapsodo…

Não os utiliza e diz-se despretensioso.
Mas foi imitando o bardo zarolho e lusíada
Que alinhou as oitavas e pariu uma Ilíada
De aspecto pavoroso.

Brinda à sua saúde em soberbos jantares
Quem o publica e ávido o publicará.
Arte? Não convém muito. Os leitores de cá
Deliram por Tavares.

Ei-lo, pois, celebrado, o loquaz Gonçalo M….
Maravilha fatal da nossa inane idade!
E por mim, que acho lúbrica a celebridade,
Alguém delira ou geme?

Mil páginas de entulho por ano amontoa.
E toda a gente as lê com gosto, mesmo assim.
Eu esculpo alexandrinos e acham-me arlequim.
Isto enerva a pessoa!

E a senhora defronte? Grande hematoma, hein?!
Vejo-lho bem agora: há no braço notada
A marca da fivela com que foi sovada
Pelo filho da mãe…

Não faz mal! O que importa é que a camisa esteja
Sem um vinco, lisinha, como o esposo gosta.
Que tem o braço não estando a mesa posta?
Vive p’ra que outro seja.

E é feliz. Ama-o tanto que tolera a dor.
Podia ser vizinha, já que não reclama,
Dos patuscos senhores por que ganha a fama
O Gonçalo escritor.

Imploram-lhe que opine… Disparam-lhe o flash
Dão-lhe prémios… Traduzem-no para chinês…
Tem na cabeça os louros, às duas por três.
Não falta quem o engraxe…

A baba que lhe deixam nas botas é que é
A água que de Hipocrene dulcíssima brota!
E a vizinha? Que engome! Valha a fatiota!
Só mesmo ao pontapé!...
 

Sem comentários: