Certa
vez, numa aldeia católica germânica, uma rapariga de vinte e quatro ou vinte
cinco anos, que não sabia ler nem escrever, foi acometida por um delírio
nervoso durante o qual, de acordo com o testemunho de todos os padres e monges
da região, foi possuída pelo que parecia ser um demónio muito erudito. É que
falava incessantemente em latim, grego e hebraico, com um tom muito pomposo e a
mais distinta das dicções. A possessão tornou-se ainda mais provável depois de
se saber que ela era, ou tinha sido, herege. O caso atraiu a atenção particular
de um jovem médico, e, a seu pedido, muitos fisiologistas e psicólogos
eminentes visitaram a aldeia. Dando em anotar aquilo que ela dizia,
descobriu-se que eram frases coerentes, embora sem ligação umas com as outras.
Do que dizia em hebraico, foi possível identificar na Bíblia apenas uma pequena porção; o resto parecia estar num
dialecto rabínico. Determinado a encontrar uma resposta, o jovem médico decidiu
investigar o passado da rapariga. Descobriu onde os pais dela, agora mortos, tinham
vivido e soube por um tio dela que, com nove anos de idade, fora caridosamente acolhida
por um pastor protestante, tendo vivido em sua casa vários anos, até à morte
deste. Com muitas dificuldades, o jovem médico descobriu uma sobrinha do
pastor, que vivera em casa dele e que se lembrava da rapariga. Depois de
indagados os hábitos do pastor, que entretanto soube que era muito erudito, descobriu
que costumava andar pela casa a ler em voz alta certas passagens dos seus
livros favoritos. Muitos desses livros ainda estavam na posse da sobrinha.
Entre eles, havia uma colecção de escritos rabínicos e vários de autores gregos
e latinos. O médico conseguiu identificar tantas passagens dos livros que abriu
que nenhuma dúvida poderia restar acerca da verdadeira proveniência das impressões
fixadas no sistema nervoso da rapariga.
tirado de: Bibliographia Literaria,
Samuel Taylor Coleridge