Conheci
o Álvaro da Horta, leitor curiosíssimo, numa festa cujas incidências mereciam
sem dúvida um livro dado à estampa. Acontecia que, esperando por dar ganso ou lampreia
à barriga, dei por mim entediado a escutar o professor Benguela Fazendeiro.
Entre a linguística dura que o homem arrotava e um ou outro arroto por conter,
de que de imediato, mostrando maneiras, se desculpava, não imagina quem me leia
o interesse com que lhe seguia as frases a dezena de pasmados que ali tinha
sido trazida não pelo cheiro a couves da eructação mas pela mercê inesperada de
privar com o intelectual. Como estava ali menos pela prelecção e mais pelos
rissóis que não chegavam, dei paciência ao apetite e fui ouvir o silêncio do
outro lado da sala. Contou-me o Álvaro mais tarde que, no preciso instante em
que eu me aproximava, bocejando, do pequeno grupo para o qual ele fora
arrastado só pela cortesia de ali estar, alguém dizia, julgando citar o Antero,
que depois da morte há escuridão e silêncio – e nada mais. Espreitando pela
fechadura das memórias que guardo dessa noite, não me recordo – juro pelo Cão –
que se tenha realmente debatido tão grave assunto. O Álvaro, como é seu hábito,
não se metia em nada que não fosse matéria de letras, mas garante que dois
fariseus, se não mesmo três, por pouco não andavam à pancada para ver quem
tinha razão a respeito da metafísica. Verdade ou não, não posso negar que as
primeiras palavras que ouvi o Álvaro dizer, em jeito de chalaça e
despertando-me de dentro de mim, foram as seguintes: “vina dabant animos”.
Indaga
o leitor o porquê da erudição súbita do latim. Paro e explico. Para caricaturar
o pugilato verbal a que assistia, e talvez conjecturando a rixa futura, citava o
Álvaro aquela parte do poema de Ovídio, como mo revelou pouco depois, em que a
morte do centauro Eurítoo, a quem Teseu deu com o crater na cabeça como paga da
indecência de ter bebido mais do que devia na boda de Pirítoo e Hipodamia,
encoraja os outros centauros, também eles embriagados, a combater ferozmente os
Lápitas. Que centauros bêbados e Lápitas aviltados estivessem aqui a ser
modernamente substituídos por defensores da imortalidade da alma e epicuristas
ignorantes é pouco importante. Para o Álvaro, era gente que bebera de mais, e
era o vinho entornado em pança por fartar a causa suprema da berraria. Perguntará
ainda o leitor, insatisfeito com a explicação, por que raio deu o Álvaro em
latinizar, desde logo, a conversa comigo. De muitos modos poderia responder a
isso: porque o Álvaro é assim; porque, sem a surpresa do latim, talvez não
tivesse atendido ao que dizia; porque qualquer superioridade moral parece haver
em falar de trivialidades com a alquimia do insólito e do gracejo. Não me
entenda mal o leitor desconfiado: não há um pingo de afectação no Álvaro. Não
tivesse ele percebido em mim uma alma idêntica à dele e tenho muitas dúvidas
que não tivesse falado no vernáculo que todos entendem. Disse aquilo, daquele
modo, no exacto latim em que Ovídio o disse primeiro, porque reconheceu decerto
numa face alheia à dele o enfado que também era o seu. E, convenhamos, nunca a
língua de Vergílio teria a influência que tem hoje sobre nós se, pelo
contrário, tivesse ele dado com a recordação num verso de Camões, Bocage ou qualquer
outra ébria figura das prezadíssimas letras nacionais.
Se
esteve com atenção, terá o leitor compreendido que foi por enfado, razão tão
plausível quanto outra qualquer, que trocámos o primeiro aperto de mão. Sem
grandes demoras, percebemos então que estávamos ali apenas para nos
encontrarmos, que de qualquer modo misterioso operava o destino aquela reunião
providencial. Caso não saiba o leitor, doutrinado que vai nos cepticismos da
contemporaneidade em que habita, nada há deveras importante que escape às
velhas fiadeiras, mulheres cansadas que, mesmo dormitando como por certo
merecem, tecem, cortam e passam de umas às outras as lãs com que cosem as vidas
que, de facto, valem o enlace. Não terão passado dez minutos e os dois
pensávamos já, como confessaríamos mais tarde um ao outro, em criar um
almanaque literário. A ideia, assim de chofre apresentada, parece agora menos
razoável do que nos pareceu na altura. Compreendemos, um e outro, que
concordávamos em concordar, ainda que fosse a primeira vez que púnhamos a ideia
fixa no assunto, que o principal defeito dos dias que correm é faltar ao mundo
uma pitada de clássicos. Quase um século havia passado desde que houvera
barafunda de gregos a incomodar a pacatez deste canavial ibérico que estiola, e
sentimos que era tempo de repetir a coisa. Seja como for, a ideia do almanaque,
como adivinhará o leitor, se a adivinhas for dado, rapidamente degenerou. A
Grécia, contudo, não podia esperar. Sem um pouco dela – dizia o Álvaro durante
a nossa conversa - não há sociedade que não se abastarde ou caia na sorna de
ficar estúpida. E foi assim que, ainda em botão, fecundada pela descoberta
imprevista e desenfadada de que não estávamos sós entre tolos, de que havia
quem pensava de modo semelhante e de que a Grécia, com um pouco de coragem, se
voltava a reerguer, que nasceu a ideia prodigiosa do Sed Contra. Sobre como essa ideia evoluiu, como se lhe deu choco,
ou como em pouco tempo se cumpriu na reconstrução deste novo oráculo de Delfos
de cinco pitonisas, haverá muito a dizer no futuro.
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