Encontrou-se no passado
fim-de-semana (dias 11 e 12 de Janeiro), tanto quanto pude apurar pelo cartaz
afixado em que dei por acaso com a vista e também pela crença de que, quando se
marcam encontros, as pessoas costumam aparecer, um conjunto de pessoas no
Centro Cultural de Belém para discutir, a acreditar no nome que escolheram dar à
coisa, o que quer que haja de urgente a respeito de literatura.
Lastimavelmente, não dei com os ossos no sarau, e fiquei em casa. Perdi assim,
mais do que a intelectual experiência
de aprender para que serve ler um livro, a disfarçada galhofa de quem, em nome
da educação da sociedade, faz amigos do peito a proferir disparates.
Sob a histérica designação de "A Urgência da Literatura", agregou-se
este povoléu durante dois dias em sala quentinha para assobiar palpites, antes
e depois de almoço, sobre o que julgam ser o poder mágico dos seus livrinhos
preferidos. Não tendo dispendido horas do meu tempo para ir escutar tão enternecedores
assobios – falha de que muito me penitencio – resta-me conjecturar acerca do
que lá se passou. De três convicções implícitas no texto com
que apresentavam a nobilíssima
sessão
me socorro: que 1) “não
sofre contestação que é através da literatura que a língua
portuguesa atinge a sua máxima realização"; que 2) há uma "necessária
missão educativos dos livros"; e que 3) se impõe "uma ampla reflexão
em torno das vantagens que o ensino do texto literário possibilita".
Por esta
pequena amostra, parece inequívoco que muito se deve ter dito, na reunião a que
emprestaram a garganta, acerca dos benefícios terapêuticos que há
nas letras dos que por elas ficaram famosos, e muita prescrição encadernada terá decerto requerido
solicitação. Não é, pois, preciso imitar os esforços do filho de Alcmena para
que se convença desde
já
uma pessoa de que isto são literatos que gostariam muito de ter a
respeitadíssima profissão de passar os dias a auscultar peitos e a rabiscar
livrinhos de receitas em venerandas salas anti-sépticas. Permita-se-me,
portanto, a contra-tese de dizer que, a respeito do que julgam ser o ofício por
que ganham calo, estão profundamente errados.
Analisando a
fundo o que vai dito, enfermam as três convicções acima mencionadas
de três
erros distintos. A primeira erra logicamente, por assumir que a literatura é
uma coisa que não é; a segunda erra ontologicamente, por assumir que a
literatura possui uma natureza que não possui; e a terceira erra
teleologicamente, por assumir que a literatura serve para uma coisa para a qual
não serve. Não desespere quem, não compreendendo o carácter analítico das
designações com que exponho os erros desta gente, se ponha já a suspeitar de
que tudo isto é apenas palavreado de quem vocifera. Um por um, explico de seguida
por que são errados os três
erros que aponto.
Sobre 1) o erro
lógico de assumir que é na
literatura que a língua atinge a sua realização máxima,
poderia talvez começar por contestar o que, para estas pessoas, parece não sofrer contestação com o esclarecimento
incontestável de que tanto pode a língua realizar-se maximamente num poema como
pode fazê-lo
num discurso político, numa piada de comediante ou numa canção. Basta para isso
que não grasse entre o político, o comediante e o cantor a geral mediocridade
dos que por aí andam a compor odes com marcadores de feltro ou a romancear
vidinhas para entreter mulheres-a-dias. Acreditar que a língua portuguesa
atinge necessariamente os píncaros das máximas realizações nas páginas do
romance de um qualquer escritor nacional é mais ou menos o mesmo que acreditar
que o verde-escuro só tem a dignidade que merece quando fixado em tela por
pintor, ou que o ferro é um metal mais nobre quando empregue em monumento do
que quando em ponte que una duas margens.
Há evidentemente
literatura em que a realização da língua é altíssima; extrapolar daí que é na literatura e só nela que a língua se pode realizar
maximamente é que me parece um raciocínio desengonçado. E, como todo aquele que anda
desengonçado passa por fraco, bêbedo
ou aleijado, teoria que se sustente em raciocínio assim é decerto teoria à qual
falta força, sobriedade ou saúde nas pernas. Aquilo que, para esta gente,
parece ser incontestável, é pois, para quem pensa, pouco mais que um desfile a
pedir gargalhada. A literatura não é a realização máxima de coisa
nenhuma. Estas pessoas gostariam muito que o fosse porque, a sê-lo, facilmente forjariam a desculpa
pela qual pudessem reclamar para os escritores e para aqueles que gravitam em
torno deles – como na verdade se reuniram para reclamá-lo – a autoridade de
tudo o que o pode ser dito na língua de que se julgam os justos proprietários.
Como sem dificuldade se comprova, a única propriedade que lhes pertence é a de não conhecerem bem
aquilo sobre o qual toda a vida puseram a atenção.
Sobre 2) o erro
ontológico de assumir que há nos livros uma necessária missão educativa,
chegará talvez o
laico fundamento de lembrar que a literatura, além de não ser a
realização máxima da língua, também não é religião. A crença na natureza
educativa do que se arruma em prateleiras é a herdeira da antiga crença, hoje
fora de época, de que
educar é
catequizar. Acreditando que já não acreditam na necessidade de educar alminhas,
acreditam contudo que há objectos privilegiados para desviar os outros dos maus
caminhos de não serem como devem, o que é mais ou menos acreditar no mesmo em
que acham que não acreditam. No fundo, não fizeram outra coisa que não fosse
substituir um livro por muitos outros, doze apóstolos por todos os que dessem
em escrever palavras e um Messias pela ideia messiânica de que todos os livros
contêm nas suas páginas uma forma de redimir quem somos. Por outras palavras,
ao invés de terem dispensado a sacralidade de um livro, como imaginam, passaram
a crer que todo o livro é sagrada escritura. Que não o seja – penso – não
requer explicação
adicional.
Sobre 3) o erro
teleológico de assumir que o texto literário possibilita vantagens sobre as
quais seja preciso reflectir, impõe-se agora o raciocínio prévio de que uma
coisa que, afinal, não é a
realização
máxima da língua nem tem natureza educativa alguma, dificilmente pode
possibilitar as vantagens que possibilitaria se fosse o que não é e tivesse a
natureza que não tem. Se assim é, parece óbvio que a literatura não pode servir
de ferramenta privilegiada com que se ensine a ler ou a escrever a língua em
que vai grafada, assim como não pode servir de bússola de costumes, estrela
polar dos modos belos de pensar ou lá o que seja com que julguem facultar a
orientação certa a quem leia. A menos que seja vantajoso uma coisa não
possibilitar vantagem alguma, nada há, portanto, para reflectir no que concerne
às eventuais vantagens do texto
literário. A literatura não serve para nada, o que é outra maneira de dizer,
como quem sabe o que vale a pena saber, que não serve senão para o que importa
que sirva.
Exposto em que
erram cada uma das três convicções em que seguram
repouso os motivos que levaram esta gente a agrupar-se urgentemente, é mister notar que, não obstante a
modernidade com que são apresentadas, é antiquíssimo aquilo que por detrás delas se esconde.
Dessa antiquidade velada, em abono da verdade, deu já conta, em parte, a
análise garatujada da segunda convicção. Diga-se agora, acrescentando ao que
ficou dito antes, que o erro aí denotado é de espécie eclesiástica,
como facilmente se percebe que seja, e que, portanto, é de um tempo em que o
clero tinha forças que
agora não
tem o pensamento de que os livros possuem qualquer missão educativa.
Aplicando-se a mesma receita à
primeira
convicção, é com rapidez que se conclui que é fidalguice o impulso que conduz a
achar que há práticas mais nobres do que outras e que, portanto, é de espécie aristocrática o
erro de crer que é na literatura e só nela que a língua de uma nação
mais se eleva.
Resta, pois,
saber que espécie de erro denota a terceira convicção e que conclusões se tiram
de juntar esse terceiro saber aos dois saberes com que antes se ficou a saber
alguma coisa. Sem especial dificuldade perceberá quem tem jeito para perceber o
raciocínio alheio que a terceira convicção, a de que os livros possibilitam
quaisquer vantagens ou, por palavras que ajudem a iluminar a estrada para onde
segue o argumento que experimento, a de que a instrução, através dos livros,
possibilita ao instruído a vantagem da ascensão social, só pode denotar um erro
de espécie burguesa, pois foi à
burguesia
que coube historicamente a possibilidade de ascender pela instrução e foi ela a
classe social que, associada ao advento das práticas comerciais em grande
escala, fez nascer a ideia utilitarista de que o valor de um objecto depende
necessariamente da finalidade que tem.
Os três erros com que se fundamentam as
convicções centrais da tese de quem acha que é pela literatura que se muda o
mundo manifestam, então, princípios
aristocráticos,
eclesiásticos e burgueses, não por acaso o modo preciso de divisão social em
que consistia o Ancien Régime. Fica
assim demonstrado, sem grande margem para discussão, o quão retrógrado é dar
por certo que ler livros é coisa que faça bem à saúde de quem lê. Defender que a literatura possa ser
terapia que devolva o viço ao que amoleceu é defender, ainda que não o pareça,
que faz falta aos tempos modernos a organização social das monarquias
absolutas.
Havendo pouco
mais a dizer sobre o assunto, requer esta lição que se recupere ainda a
analogia, inicialmente prometida, entre a douta vocação para ser doutor e quem quer
que assim tenha pelo regime do monarca todo-poderoso a mais oculta ternura. Não
vá a questão
estar esquecida, tamanho foi o desvio a que entretanto foi levado quem leu,
sugeri anteriormente que aqueles que acreditam que ler determinadas coisas
transforma palermas em gente grande menos se comportam como literatos do que
como médicos. É
sobre esse comportamento, ou sobre o desejo de ser outra coisa que por esse
comportamento freudianamente se revela, que quero agora pôr a reflexão.
De acordo com o
subtítulo do encontro, "Ler Melhor, Compreender o Humano, Preparar o
Futuro", crê quem assim se juntou que se deve "ler melhor" do
que se lê actualmente, que ler melhor leva a "compreender o humano",
e que compreender tal coisa através de melhores leituras ajuda a "preparar
o futuro". Para esta gente, por conseguinte, miúdo ou miúda que tenha tido
o azar de dar em disléxico
não
poderá nunca
compreender a raça dos homens nem terá grande futuro
pela frente. Guardiões das boas leituras, estas pessoas acham que ler bem, seja
lá o que isso for, leva necessariamente a compreender bem o que é humano e, por
sua vez, a ficar melhor preparado para o que quer que aí futuramente venha.
Convencidos de que a literatura possui anticorpos capazes de prevenir a doença
adulta de ser tolo, e estando de acordo que falta ao país um plano nacional de
prevenção contra a tolice, deram portanto em decidir conversar sobre o assunto,
julgando talvez que a conversa assim agendada vacinaria quem gentilmente os
viesse escutar a favor da necessidade de vacinar quem não viesse.
Enverede-se
pela ilustração da tese com um exemplo prático: se for dada a ler a uma criança
a Divina Comédia, e se a leitura for
boa, fica ela apta a compreender outras pessoas, a compreender, por exemplo,
que indivíduos que se
reúnem
para discutir falácias com as quais julgam possível mudar o mundo, menos
interessados em estarem certos do que em sonharem à noite com a renovada reputação que os
espera no dia seguinte, são na verdade correligionários fingidos de regimes nos
quais a liberdade é só figura de estilo? E tornar-se-á ela, por essa aptidão
assim adquirida, em adulto que mereça a medalha de ser boa pessoa? Terá ela a
consolação de ficar preparada para o que der e vier, de ficar preparada, por
exemplo, para denunciar a tolice que há em aspirar a mudar o mundo pela palmatória encarniçada de ensinar a ler
melhor?
Parece-me evidente que, por ler muito bem
aquilo que um florentino qualquer escreveu, ninguém fica apto a saber coisa alguma
do mundo e de quem lá ande, salvo talvez quem pela estupidez de ser estúpido se
creia menos estúpido depois da leitura. De igual modo, ninguém se torna melhor
pessoa ou aprende a ser gente grande apenas por ter ficado a saber que dois
literatos andaram de mão dada por sítios onde havia coisas extraordinárias que
muito os pasmaram. O próprio Dante, que escreveu o que alegadamente, se bem
lido, transforma pessoas normais em prodigiosos entendedores do espectáculo que
os rodeia e do futuro que os espera, e que, para tê-lo escrito, muitas outras coisas que
alegadamente ensinam a ser esperto deve ter lido, não parecia perceber muito
bem, já homem de meia-idade, nem a “selva
oscura” que o rodeava nem o que poderia esperar de um futuro no qual “la diritta via era smarrita”.
E não foi
justamente por ter lido num livro de aventuras qualquer que um cavaleiro beijou
atrevidamente uma donzela que, num dos mais famosos episódios da peregrinação
de Dante, Paolo Malatesta, literalmente aquele que está mal da cabeça, decidiu
beijar Francesca da Rimini, decisão que pôs fim às leituras daquele dia e os haveria de
condenar depois à companhia
eterna dos que pecaram carnalmente? Pelo menos de acordo com este exemplo,
prescrever leituras mais conduz à
perdição
do que à salvação.
Acreditar, por isso, que ler é remédio contra a estupidez, ou que adultos que
tenham cultivado o hábito da leitura estão necessariamente a salvo de se
equivocarem fatalmente, é tomar a literatura pelo fármaco que não é, e os que
assim incorrem no engano de se comportarem como médicos a receitar leituras a
quem delas não precisa mais são crianças em recreio do que adultos a quem
importe dar ouvidos.
Para ser
directo, prescrever leituras é brincar aos médicos. A medicina destas crianças curiosas, como toda a medicina a fingir, não
remedeia males reais; quando muito, permite-lhes descobrir vontades que
desconheciam, que é o que normalmente as crianças descobrem quando se julgam no
consultório a operar o amiguinho de barriga para cima. Quando sugerem que se
leia isto ou aquilo, de acordo com esta ou aquela perspectiva, não estão, por
isso, a contribuir para a convalescença de quem vier a ler o sugerido. O
supositório com que julgam baixar a febre de quem é tolo é só a plasticina pela qual
sustentam a ficção de serem quem faz da vida mais do que imaginar que não é
miúdo. Ora, é precisamente nessa ficção que consiste a real utilidade da
diversão de se julgarem médicos. Ao contrário do que pensam, prescrever
leituras não tem por finalidade aliviar dores de outras pessoas, mas dores próprias;
como ficção que é, não serve para melhorar o mundo lá fora, mas antes para
sossegar a intumescência que, de tanto quererem ser o que não são, é já difícil
de esconder.
Como crianças
entretidas a quererem ser senhores doutores, de duas maneiras obtêm prazer de
achar o que acham aqueles que acham que a literatura tem urgência e faz bem às pessoas: primeiro porque é suficientemente científica a ocupação de curar inflamações com
pomadas exactas, o que agrada naturalmente a quem julga, como estas pessoas, que
toda a séria profissão de adulto deve produzir efeitos que comprovem
diagnósticos; depois porque a qualquer um excita a brincadeira de,
imaginando-se médico a consultar paciente, se poderem apalpar corpos alheios.
Contentam-se assim quer por continuarem a acreditar que se ocupam do que julgam
ser respeitável, quer por satisfazerem humidamente o desejo por cumprir de se
ocuparem realmente de tal coisa.
Juntando agora
às conclusões anteriores esta última, é talvez chegado o momento de dar fecho à
notícia deliberando que, em conformidade com aquilo que o raciocínio a pouco e
pouco foi trilhando, as pessoas que se congregaram no passado fim-de-semana para
discutir a urgência da literatura não só devem ter muitíssima pena de não terem
por casa o cortelho que teriam se vivessem no regime que melhor se adequa ao
tipo de intelecto que possuem como também gostariam tanto de ser médicos que,
perdendo momentaneamente a lucidez, acabam por julgar que, de facto, o são. É
nestes momentos de desvario, momentos de que a reunião a que se prestaram é
superior exemplo, que se entregam então a um conjunto de actividades que, não
obstante fazerem todo o sentido quando há diploma que comprova que há médico,
ou passam por inocências de criança ou são procedimento de tarados.
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