19/01/2014

Sed Contra - A Urgência da Literatura


Encontrou-se no passado fim-de-semana (dias 11 e 12 de Janeiro), tanto quanto pude apurar pelo cartaz afixado em que dei por acaso com a vista e também pela crença de que, quando se marcam encontros, as pessoas costumam aparecer, um conjunto de pessoas no Centro Cultural de Belém para discutir, a acreditar no nome que escolheram dar à coisa, o que quer que haja de urgente a respeito de literatura. Lastimavelmente, não dei com os ossos no sarau, e fiquei em casa. Perdi assim, mais do que a intelectual experiência de aprender para que serve ler um livro, a disfarçada galhofa de quem, em nome da educação da sociedade, faz amigos do peito a proferir disparates.

Sob a histérica designação de "A Urgência da Literatura", agregou-se este povoléu durante dois dias em sala quentinha para assobiar palpites, antes e depois de almoço, sobre o que julgam ser o poder mágico dos seus livrinhos preferidos. Não tendo dispendido horas do meu tempo para ir escutar tão enternecedores assobios – falha de que muito me penitencio – resta-me conjecturar acerca do que lá se passou. De três convicções implícitas no texto com que apresentavam a nobilíssima sessão me socorro: que 1) “não sofre contestação que é através da literatura que a língua portuguesa atinge a sua máxima realização"; que 2) há uma "necessária missão educativos dos livros"; e que 3) se impõe "uma ampla reflexão em torno das vantagens que o ensino do texto literário possibilita".
Por esta pequena amostra, parece inequívoco que muito se deve ter dito, na reunião a que emprestaram a garganta, acerca dos benefícios terapêuticos que há nas letras dos que por elas ficaram famosos, e muita prescrição encadernada terá decerto requerido solicitação. Não é, pois, preciso imitar os esforços do filho de Alcmena para que se convença desde já uma pessoa de que isto são literatos que gostariam muito de ter a respeitadíssima profissão de passar os dias a auscultar peitos e a rabiscar livrinhos de receitas em venerandas salas anti-sépticas. Permita-se-me, portanto, a contra-tese de dizer que, a respeito do que julgam ser o ofício por que ganham calo, estão profundamente errados.
Analisando a fundo o que vai dito, enfermam as três convicções acima mencionadas de três erros distintos. A primeira erra logicamente, por assumir que a literatura é uma coisa que não é; a segunda erra ontologicamente, por assumir que a literatura possui uma natureza que não possui; e a terceira erra teleologicamente, por assumir que a literatura serve para uma coisa para a qual não serve. Não desespere quem, não compreendendo o carácter analítico das designações com que exponho os erros desta gente, se ponha já a suspeitar de que tudo isto é apenas palavreado de quem vocifera. Um por um, explico de seguida por que são errados os três erros que aponto. 
Sobre 1) o erro lógico de assumir que é na literatura que a língua atinge a sua realização máxima, poderia talvez começar por contestar o que, para estas pessoas, parece não sofrer contestação com o esclarecimento incontestável de que tanto pode a língua realizar-se maximamente num poema como pode fazê-lo num discurso político, numa piada de comediante ou numa canção. Basta para isso que não grasse entre o político, o comediante e o cantor a geral mediocridade dos que por aí andam a compor odes com marcadores de feltro ou a romancear vidinhas para entreter mulheres-a-dias. Acreditar que a língua portuguesa atinge necessariamente os píncaros das máximas realizações nas páginas do romance de um qualquer escritor nacional é mais ou menos o mesmo que acreditar que o verde-escuro só tem a dignidade que merece quando fixado em tela por pintor, ou que o ferro é um metal mais nobre quando empregue em monumento do que quando em ponte que una duas margens.
Há evidentemente literatura em que a realização da língua é altíssima; extrapolar daí que é na literatura e só nela que a língua se pode realizar maximamente é que me parece um raciocínio desengonçado. E, como todo aquele que anda desengonçado passa por fraco, bêbedo ou aleijado, teoria que se sustente em raciocínio assim é decerto teoria à qual falta força, sobriedade ou saúde nas pernas. Aquilo que, para esta gente, parece ser incontestável, é pois, para quem pensa, pouco mais que um desfile a pedir gargalhada. A literatura não é a realização máxima de coisa nenhuma. Estas pessoas gostariam muito que o fosse porque, a sê-lo, facilmente forjariam a desculpa pela qual pudessem reclamar para os escritores e para aqueles que gravitam em torno deles – como na verdade se reuniram para reclamá-lo – a autoridade de tudo o que o pode ser dito na língua de que se julgam os justos proprietários. Como sem dificuldade se comprova, a única propriedade que lhes pertence é a de não conhecerem bem aquilo sobre o qual toda a vida puseram a atenção.
Sobre 2) o erro ontológico de assumir que há nos livros uma necessária missão educativa, chegará talvez o laico fundamento de lembrar que a literatura, além de não ser a realização máxima da língua, também não é religião. A crença na natureza educativa do que se arruma em prateleiras é a herdeira da antiga crença, hoje fora de época, de que educar é catequizar. Acreditando que já não acreditam na necessidade de educar alminhas, acreditam contudo que há objectos privilegiados para desviar os outros dos maus caminhos de não serem como devem, o que é mais ou menos acreditar no mesmo em que acham que não acreditam. No fundo, não fizeram outra coisa que não fosse substituir um livro por muitos outros, doze apóstolos por todos os que dessem em escrever palavras e um Messias pela ideia messiânica de que todos os livros contêm nas suas páginas uma forma de redimir quem somos. Por outras palavras, ao invés de terem dispensado a sacralidade de um livro, como imaginam, passaram a crer que todo o livro é sagrada escritura. Que não o seja – penso – não requer explicação adicional.
Sobre 3) o erro teleológico de assumir que o texto literário possibilita vantagens sobre as quais seja preciso reflectir, impõe-se agora o raciocínio prévio de que uma coisa que, afinal, não é a realização máxima da língua nem tem natureza educativa alguma, dificilmente pode possibilitar as vantagens que possibilitaria se fosse o que não é e tivesse a natureza que não tem. Se assim é, parece óbvio que a literatura não pode servir de ferramenta privilegiada com que se ensine a ler ou a escrever a língua em que vai grafada, assim como não pode servir de bússola de costumes, estrela polar dos modos belos de pensar ou lá o que seja com que julguem facultar a orientação certa a quem leia. A menos que seja vantajoso uma coisa não possibilitar vantagem alguma, nada há, portanto, para reflectir no que concerne às eventuais vantagens do texto literário. A literatura não serve para nada, o que é outra maneira de dizer, como quem sabe o que vale a pena saber, que não serve senão para o que importa que sirva.
Exposto em que erram cada uma das três convicções em que seguram repouso os motivos que levaram esta gente a agrupar-se urgentemente, é mister notar que, não obstante a modernidade com que são apresentadas, é antiquíssimo aquilo que por detrás delas se esconde. Dessa antiquidade velada, em abono da verdade, deu já conta, em parte, a análise garatujada da segunda convicção. Diga-se agora, acrescentando ao que ficou dito antes, que o erro aí denotado é de espécie eclesiástica, como facilmente se percebe que seja, e que, portanto, é de um tempo em que o clero tinha forças que agora não tem o pensamento de que os livros possuem qualquer missão educativa. Aplicando-se a mesma receita à primeira convicção, é com rapidez que se conclui que é fidalguice o impulso que conduz a achar que há práticas mais nobres do que outras e que, portanto, é de espécie aristocrática o erro de crer que é na literatura e só nela que a língua de uma nação mais se eleva.
Resta, pois, saber que espécie de erro denota a terceira convicção e que conclusões se tiram de juntar esse terceiro saber aos dois saberes com que antes se ficou a saber alguma coisa. Sem especial dificuldade perceberá quem tem jeito para perceber o raciocínio alheio que a terceira convicção, a de que os livros possibilitam quaisquer vantagens ou, por palavras que ajudem a iluminar a estrada para onde segue o argumento que experimento, a de que a instrução, através dos livros, possibilita ao instruído a vantagem da ascensão social, só pode denotar um erro de espécie burguesa, pois foi à burguesia que coube historicamente a possibilidade de ascender pela instrução e foi ela a classe social que, associada ao advento das práticas comerciais em grande escala, fez nascer a ideia utilitarista de que o valor de um objecto depende necessariamente da finalidade que tem.
Os três erros com que se fundamentam as convicções centrais da tese de quem acha que é pela literatura que se muda o mundo manifestam, então, princípios aristocráticos, eclesiásticos e burgueses, não por acaso o modo preciso de divisão social em que consistia o Ancien Régime. Fica assim demonstrado, sem grande margem para discussão, o quão retrógrado é dar por certo que ler livros é coisa que faça bem à saúde de quem lê. Defender que a literatura possa ser terapia que devolva o viço ao que amoleceu é defender, ainda que não o pareça, que faz falta aos tempos modernos a organização social das monarquias absolutas.
Havendo pouco mais a dizer sobre o assunto, requer esta lição que se recupere ainda a analogia, inicialmente prometida, entre a douta vocação para ser doutor e quem quer que assim tenha pelo regime do monarca todo-poderoso a mais oculta ternura. Não vá a questão estar esquecida, tamanho foi o desvio a que entretanto foi levado quem leu, sugeri anteriormente que aqueles que acreditam que ler determinadas coisas transforma palermas em gente grande menos se comportam como literatos do que como médicos. É sobre esse comportamento, ou sobre o desejo de ser outra coisa que por esse comportamento freudianamente se revela, que quero agora pôr a reflexão.
De acordo com o subtítulo do encontro, "Ler Melhor, Compreender o Humano, Preparar o Futuro", crê quem assim se juntou que se deve "ler melhor" do que se lê actualmente, que ler melhor leva a "compreender o humano", e que compreender tal coisa através de melhores leituras ajuda a "preparar o futuro". Para esta gente, por conseguinte, miúdo ou miúda que tenha tido o azar de dar em disléxico não poderá nunca compreender a raça dos homens nem terá grande futuro pela frente. Guardiões das boas leituras, estas pessoas acham que ler bem, seja lá o que isso for, leva necessariamente a compreender bem o que é humano e, por sua vez, a ficar melhor preparado para o que quer que aí futuramente venha. Convencidos de que a literatura possui anticorpos capazes de prevenir a doença adulta de ser tolo, e estando de acordo que falta ao país um plano nacional de prevenção contra a tolice, deram portanto em decidir conversar sobre o assunto, julgando talvez que a conversa assim agendada vacinaria quem gentilmente os viesse escutar a favor da necessidade de vacinar quem não viesse.
Enverede-se pela ilustração da tese com um exemplo prático: se for dada a ler a uma criança a Divina Comédia, e se a leitura for boa, fica ela apta a compreender outras pessoas, a compreender, por exemplo, que indivíduos que se reúnem para discutir falácias com as quais julgam possível mudar o mundo, menos interessados em estarem certos do que em sonharem à noite com a renovada reputação que os espera no dia seguinte, são na verdade correligionários fingidos de regimes nos quais a liberdade é só figura de estilo? E tornar-se-á ela, por essa aptidão assim adquirida, em adulto que mereça a medalha de ser boa pessoa? Terá ela a consolação de ficar preparada para o que der e vier, de ficar preparada, por exemplo, para denunciar a tolice que há em aspirar a mudar o mundo pela palmatória encarniçada de ensinar a ler melhor?
 Parece-me evidente que, por ler muito bem aquilo que um florentino qualquer escreveu, ninguém fica apto a saber coisa alguma do mundo e de quem lá ande, salvo talvez quem pela estupidez de ser estúpido se creia menos estúpido depois da leitura. De igual modo, ninguém se torna melhor pessoa ou aprende a ser gente grande apenas por ter ficado a saber que dois literatos andaram de mão dada por sítios onde havia coisas extraordinárias que muito os pasmaram. O próprio Dante, que escreveu o que alegadamente, se bem lido, transforma pessoas normais em prodigiosos entendedores do espectáculo que os rodeia e do futuro que os espera, e que, para tê-lo escrito, muitas outras coisas que alegadamente ensinam a ser esperto deve ter lido, não parecia perceber muito bem, já homem de meia-idade, nem a “selva oscura” que o rodeava nem o que poderia esperar de um futuro no qual “la diritta via era smarrita”.
E não foi justamente por ter lido num livro de aventuras qualquer que um cavaleiro beijou atrevidamente uma donzela que, num dos mais famosos episódios da peregrinação de Dante, Paolo Malatesta, literalmente aquele que está mal da cabeça, decidiu beijar Francesca da Rimini, decisão que pôs fim às leituras daquele dia e os haveria de condenar depois à companhia eterna dos que pecaram carnalmente? Pelo menos de acordo com este exemplo, prescrever leituras mais conduz à perdição do que à salvação. Acreditar, por isso, que ler é remédio contra a estupidez, ou que adultos que tenham cultivado o hábito da leitura estão necessariamente a salvo de se equivocarem fatalmente, é tomar a literatura pelo fármaco que não é, e os que assim incorrem no engano de se comportarem como médicos a receitar leituras a quem delas não precisa mais são crianças em recreio do que adultos a quem importe dar ouvidos.  
Para ser directo, prescrever leituras é brincar aos médicos. A medicina destas crianças curiosas, como toda a medicina a fingir, não remedeia males reais; quando muito, permite-lhes descobrir vontades que desconheciam, que é o que normalmente as crianças descobrem quando se julgam no consultório a operar o amiguinho de barriga para cima. Quando sugerem que se leia isto ou aquilo, de acordo com esta ou aquela perspectiva, não estão, por isso, a contribuir para a convalescença de quem vier a ler o sugerido. O supositório com que julgam baixar a febre de quem é tolo é só a plasticina pela qual sustentam a ficção de serem quem faz da vida mais do que imaginar que não é miúdo. Ora, é precisamente nessa ficção que consiste a real utilidade da diversão de se julgarem médicos. Ao contrário do que pensam, prescrever leituras não tem por finalidade aliviar dores de outras pessoas, mas dores próprias; como ficção que é, não serve para melhorar o mundo lá fora, mas antes para sossegar a intumescência que, de tanto quererem ser o que não são, é já difícil de esconder.
Como crianças entretidas a quererem ser senhores doutores, de duas maneiras obtêm prazer de achar o que acham aqueles que acham que a literatura tem urgência e faz bem às pessoas: primeiro porque é suficientemente científica a ocupação de curar inflamações com pomadas exactas, o que agrada naturalmente a quem julga, como estas pessoas, que toda a séria profissão de adulto deve produzir efeitos que comprovem diagnósticos; depois porque a qualquer um excita a brincadeira de, imaginando-se médico a consultar paciente, se poderem apalpar corpos alheios. Contentam-se assim quer por continuarem a acreditar que se ocupam do que julgam ser respeitável, quer por satisfazerem humidamente o desejo por cumprir de se ocuparem realmente de tal coisa.
Juntando agora às conclusões anteriores esta última, é talvez chegado o momento de dar fecho à notícia deliberando que, em conformidade com aquilo que o raciocínio a pouco e pouco foi trilhando, as pessoas que se congregaram no passado fim-de-semana para discutir a urgência da literatura não só devem ter muitíssima pena de não terem por casa o cortelho que teriam se vivessem no regime que melhor se adequa ao tipo de intelecto que possuem como também gostariam tanto de ser médicos que, perdendo momentaneamente a lucidez, acabam por julgar que, de facto, o são. É nestes momentos de desvario, momentos de que a reunião a que se prestaram é superior exemplo, que se entregam então a um conjunto de actividades que, não obstante fazerem todo o sentido quando há diploma que comprova que há médico, ou passam por inocências de criança ou são procedimento de tarados.
 

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