Desconheço o evangelho em que vá
escrito que um macaco deve comiseração a outro macaco, ou que deve uma galinha
simpatizar com a sorte de outra galinha antes de simpatizar com a de um pato.
Para todos os efeitos, quem quer que não conheça o rapazito africano que
ilustra de tempos a tempos a fome daquele continente não sente por ele, ainda
que lhe digam que sim, nada que não possa sentir por uma cana de pesca. Por
outras palavras, ser humanitário é estar enganado. A diferença entre um
rapazito a quem a subnutrição concedeu honras de capa de revista e um pinguim a
levar pauladas em nome da ciência é que o primeiro perde mais tempo a sacudir
moscas do que o segundo - e talvez o facto de o rapazito, apesar de tão
barrigudo quanto o pinguim, ter menos sardinhas no bucho. Vem isto a propósito,
perguntará o leitor a quem o pasmo ainda governa, da morte do Borges, no ano
que agora findou, e da discussão em torno de como se deve reagir à morte de
alguém que não se conhece e sobre quem haja a opinião de que fica melhor
estendido do que de pé. Como se perceberá pelo que vai dito acima, tirando a
família e os amigos, não creio que seja passível de acusação quem quer que não
lhe tenha lamentado a morte. Merece mais a nossa comiseração aquilo que nos
rodeia do que um irmão que nunca conhecemos.
Para dizer a verdade, a morte do Borges
tocou-me profundamente, mas apenas porque o Borges, no meu vocabulário
quotidiano, era o cão do vizinho, não o economista de quem todos, por uma
questão de humanitarismo, ou seja, por engano, disseram palavras bonitas. A
morte do António, a mim, pouco ou nada me tocou. Já pelo Borges, fique o leitor
a saber, verti lágrimas verdadeiras. O António aparecia na televisão, falava a
mesma língua que eu, e, se calhar, até gostava de arroz à valenciana. Mas o
António era assim lá longe. Com o Borges tive o prazer de me cruzar várias
vezes; em diversas ocasiões lhe afaguei o pêlo enquanto cumprimentava o dono;
até uma ou outra vez vi ficar irritado quem lhe pisou distraidamente os
dejectos. Por que razão haveria eu, que nunca apertei a mão ao António nem sei
nada sobre o seu sistema excretor, de me comiserar mais pela morte dele do que
pela do Borges? E, caramba!, não pode um ser humano comum, um ser humano a quem
não foi dado o privilégio de conhecer de Amália Rodrigues senão os fados que
cantou, ter chorado menos a morte da fadista do que a da lontra que dela herdou
a etiqueta a que chamam nome?
Aqueles que defenderam a lástima do
sucedido usaram, no entanto, um outro argumento, além do comportamento
humanitário que acham devido a quem é da mesma espécie: o ter sido um homem de
convicções. Também neste caso, porém, me parece frágil a teoria. Não faltam exemplos,
a quem saiba um pouco de História, de homens de convicções que, em última
análise, não mereciam a comiseração de ninguém. Erra tanto aquele que faz
erradamente alguma coisa por convicção quanto aquele que o faz erradamente por
acaso. Pode o leitor pensar que não, mas ter convicções é como ter borbulhas, e
a infâmia tanto reverdece em quem é afligido por males cutâneos como em quem
tem o rosto polido e bem tratado. Tal raciocínio, de resto, não é sequer
necessário, se atendermos à razoabilidade de perceber que, ao referirem as convicções
do António, aqueles que apareceram de chofre a comentar-lhe o último embarque
mais lembraram um chavão do que proferiram uma verdade. Lembrar as convicções
de um morto, como aliás exigir o respeito de todos aqueles a quem a genética
fez parecidos, não é senão parte da extremíssima unção que a todos os que
passaram pela vida, o que quer que tenham feito, julgam ser devida. Não deve,
por isso, ter mais seriedade que a pouca que tem o ritual a que pertence, até
porque, se bem vistas as coisas, facilmente se percebe que só com a desculpa
ritualística pode alguém cometer a asneira de achar honesto lembrar tal coisa.
Menciono a honestidade dessa lembrança
porque não terá com certeza passado despercebida, nem mesmo aos mais
desatentos, a espectacular pirueta do António, ele que era um dos mais
vociferantes defensores da política de austeridade até então, quando, poucos
meses antes de ir ressonar para dentro, declarou que Portugal não precisava de
mais austeridade. Como as circunstâncias que justificavam a opinião não se
alteraram (nenhum defensor convicto da austeridade mudou, aliás, de opinião, à
excepção do António) e como nenhum ptolemaico passa a ser copernicano do dia
para a noite, sem uma razão forte, tamanha mudança de opinião requer
explicação. Ora, poderá um cancro no pâncreas causar a metanóia tanto quanto a
queda de um cavalo a caminho de Damasco? Embora a doença o acompanhasse já há
algum tempo, é provável que a esperança - que não costuma ser das primeiras
coisas a abandonar os moribundos - fosse subsistindo enquanto o diagnóstico da
irreversibilidade ia sendo protelado. Sem essa esperança, resta contudo a quem
finda a cobardia de pedinchar por um milagre. E, por milagres, os homens
abdicam de tudo, até das suas convicções mais profundas.
À falta de melhor explicação, há pois
suficiente plausibilidade em acreditar que o António mudou de convicções, não
obstante a linearidade com que lhe descreveram a vida no momento da morte, pela
tolice de achar que uma boa acção talvez lhe salvasse a vida. Lembra-me esta
relação entre comportamentos de bons cristãos e acontecimentos desejados um dos
episódios infantis de que menos me orgulho. Era miúdo, tinha a minha avô
doente, e jogava o Benfica, para as competições europeias. Tendo o jogo
começado a correr bem, senti necessidade de ressarcir quem quer que me
estivesse a propiciar aquela alegria, e fui a correr para o leito da minha avô.
Lembro-me de pensar, com uma infantilidade que agora repudio, que talvez o jogo
de futebol continuasse a decorrer conforme desejava, se lhe fizesse alguma
companhia e a ajudasse a beber o chá. E assim procedi, contente por a minha
acção estar de facto a produzir o efeito esperado. Foi, sem dúvida alguma, o
primeiro comportamento piedoso de que tenho consciência. E foi por ele que aprendi,
embora muito tempo mais tarde, que comportamentos piedosos são, na sua
essência, cartas escondidas na manga de que nos servirmos para trapacear as
vontades providenciais. Hoje sei, leitor compreensivo, que há pouquíssima
piedade num comportamento piedoso, que levar o chá à boca de quem está doente é
o óbolo pelo qual se trocam os favores celestes. Na altura, porém, não o sabia.
Desejava muito uma coisa, e achei que podia obtê-la pela batota do comércio.
Serviu este apontamento confessional,
portanto, para mostrar como trocar boas acções por coisas que se desejam não é
apenas mau negócio, como pensarão todos aqueles que, desconfiando da
metafísica, não depositam porém a atenção na lógica, mas sobretudo um negócio
imoral. Pior do que a estupidez de acreditar que uma mudança de convicções
pudesse devolver-lhe a saúde, cometeu o António a imoralidade de rechear a
bolsa a Caronte para que o barqueiro lhe adiasse a travessia. Nada disto
poderia algum dia ter feito, por seu turno, o Borges, não só porque nunca o vi
preocupado com a saúde como porque tinha pouco jeito para os negócios. Não, o
Borges não era cão para mudar de convicções sem mais nem menos; nunca deixou de
ladrar aos gatos que passavam e nunca deixou de abanar a cauda satisfeita
quando lhe batiam na tigela a avisar que havia guisado. Nem mesmo quando, nos
últimos meses, passava os dias deitado, aos pés do dono, a arfar como se
tivesse corrido atrás de duas lebres, provavelmente com dores por todo o corpo,
o coitado.
A morte do Borges, sim, excitou em mim
aquilo que dizem que devo a criaturas como o António. E, se neste epitáfio
incomum, ao sentenciar o que de cada um deles deve a posteridade reter, pareço
defender que há mais tristeza em finar-se um cachorro do que um economista não
é porque pense que, de maneira geral, os cachorros merecem mais as linhas do
obituário do que os economistas, mas porque este cachorro particular, este
cachorro que me babava os dedos quando o acariciava e que, muito
disciplinadamente, sempre trazia até mim o pau que eu atirava, me deu mais horas
felizes do que um economista a quem nunca apertei a mão, e também porque era
afinal mais íntegra a sua alma canina, mesmo quando já se desenrolava a
mortalha com que haveria de ser tapada, do que a alma do economista pela qual
todos acharam merecido, por lapso ou pelo mesmo negócio imoral, que se lacrimejasse
abundantemente. De que me serve ao cálculo da comiseração que devo a cada um
deles o argumento de que o António era mais humano do que o Borges, se estava
menos próximo e era afinal menos piedoso do que ele?
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