07/07/2014

Qui Sumus (4)


Carlos da Gentileza Mendes é, dos cinco, o único fumador. Pode parecer irrelevante que o seja, mas não é. Fumar é uma forma de estar sozinho consigo mesmo, mas estando distraído de si. É uma actividade, portanto, mais ou menos análoga à actividade de imaginar, salvo a subtil mas importantíssima diferença de não se estar atento à solidão. Quem fuma deposita parte do pensamento nas baforadas com que se sacia e nos rodopios que o fumo faz pelo ar; pode até esforçar-se por pensar muito profundamente na pessoa que é, mas todos os pensamentos são regulados pela actividade externa de engolir e expelir fumo durante uns minutos. Quem imagina, por outro lado, tem como única distracção aquilo que encontra dentro da caverna para onde orienta o pensamento; nada há de externo que o desvie do seu abismo interior.
Fumar é, deste ponto de vista, o trilho de migalhas que permite a quem passeia pela floresta que tem dentro dele fazê-lo sem correr o risco de não encontrar rapidamente o caminho de volta. É, por essa razão, uma actividade análoga a todas as actividades mentais não-imaginativas: fazer contas, ler, escrever, escutar uma melodia, jogar xadrez e até recordar o passado. Nelas, o pensamento volta-se para dentro, é verdade, mas vai agarrado a qualquer coisa, actual ou antiga, que deveras existe, e não se dobra realmente sobre si mesmo. Há introspecção, de facto, mas com corda e arnês. Não é por isso surpreendente, leitor aborrecido, que as histórias que mais lhe interessam sejam aquelas que, agarradas ao terem existido algures, vêm escritas em manuais de História ou, tendo acontecido a alguém, foram passadas popularmente, de geração em geração, até chegarem aos ouvidos dos modernos. Como perceberá o leitor que percebe alguma coisa, exerce o Carlos o cinzento ofício de ser historiador.
Recordar o passado é uma actividade útil e, como todas as actividades úteis, não tem interesse para além da utilidade que tem. Nada do que se historiou acerca de Ricardo III, por maior utilidade que tenha, pode ter mais interesse do que aquilo que Shakespeare o fez dizer da sua própria pessoa. A História só interessa, querido leitor, quando é mal contada. Só o que não aconteceu, ou o que aconteceu de outra maneira, vale o empenho dos que contam coisas aos outros. Ninguém que saiba empregar a curiosidade se interessa pelo que verdadeiramente aconteceu porque o que aconteceu ou é enfadonho ou, por ter realmente acontecido, leva a pensar na tristeza que há em já não poder acontecer.
Deve o leitor interessado certamente saber que recordam os ouvidos imemoriais da sabedoria colectiva, ouvidos que nada esquecem, que Afonso, o Sábio (Afonso X de Castela), tendo certa vez escutado uma explicação acerca da complicada matemática de que é preciso para se fazer a demonstração da astronomia de Ptolomeu, afirmou que, se Deus, ao criar o mundo, o tivesse consultado, ele teria recomendado uma coisa mais simples. Uma versão ligeiramente menos destemida deste famoso enunciado, conquanto, ao que tudo indica, igualmente apócrifa, deixou-a Carlyle registada, para usufruto autorizado da curiosidade futura, no sétimo capítulo do segundo livro da sua biografia de Frederico, o Grande. Aí, sugere Carlyle que Afonso, o Sábio, teria dito não o que dizem que disse mas que, sendo o mundo uma coisa tão débil, era uma pena que o Criador não se tivesse aconselhado antes de criá-lo.
Quando alguém, mais ou menos destemidamente, consoante as versões, profere uma coisa deste género, importa menos que deveras o tenha proferido do que a lembrança propagada de boca em boca da ousadia com que o teria feito, se feito deveras o tivesse. Não é, pois, por ter havido pronunciamento autêntico, mas por haver lembrança do que talvez não tenha havido e gente que a propague que hoje se recorda não o monarca que houve, mas o que ele pronunciou, se porventura o tiver pronunciado. A História que verdadeiramente interessa a quem se interessa por alguma coisa não é o que aconteceu, mas o que se disse que aconteceu depois de ter acontecido; a História que verdadeiramente interessa – eis enfim a tese – é toda ela apócrifa. Não recordamos de Tróia quem dentro dela deveras reinou nem quem a destruiu, mas o velho Príamo, os gregos dentro do cavalo de pau e tudo o que Homero apocrifamente nos disse que lá se passou. De Afonso, o Sábio, fiquemos pois só com a convicção de que aquilo que possivelmente não disse foi coisa por ele deveras dita – e contentemo-nos com o melhor que há na História, que é o não ter ela havido.
Na primeira das duas rubricas pelas quais responderá, “Res Scriptae”, Carlos da Gentileza Mendes recordará, pois, pedaços do que realmente aconteceu. Não obstante o interesse que não podem ter, as pequenas histórias que aí se juntarão convirão talvez a quem sofra da aborrecida mania de ser coleccionador ou a quem, não podendo alimentar o espírito apenas com o que realmente interessa, como alguém a quem o médico ordenou que comesse mais verduras, tem de alternar entre aquilo com que se delicia e a dieta que lhe convém. Como também se indigna, às vezes, com os maus usos que se fazem da língua, assinará ainda a rubrica “Prima Facie”, onde comentará equívocos, dará lições de etimologia e contará as origens de algumas expressões populares. Em qualquer das rubricas, não se deve esperar que Carlos da Gentileza Mendes seja mais do que é.
 

Sem comentários: