Carlos da
Gentileza Mendes é, dos cinco, o único fumador. Pode parecer irrelevante que o
seja, mas não é. Fumar é uma forma de estar sozinho consigo mesmo, mas estando
distraído de si. É uma actividade, portanto, mais ou menos análoga à actividade
de imaginar, salvo a subtil mas importantíssima diferença de não se estar
atento à solidão. Quem fuma deposita parte do pensamento nas baforadas com que
se sacia e nos rodopios que o fumo faz pelo ar; pode até esforçar-se por pensar
muito profundamente na pessoa que é, mas todos os pensamentos são regulados
pela actividade externa de engolir e expelir fumo durante uns minutos. Quem
imagina, por outro lado, tem como única distracção aquilo que encontra dentro
da caverna para onde orienta o pensamento; nada há de externo que o desvie do
seu abismo interior.
Fumar é, deste
ponto de vista, o trilho de migalhas que permite a quem passeia pela floresta
que tem dentro dele fazê-lo sem correr o risco de não encontrar rapidamente o
caminho de volta. É, por essa razão, uma actividade análoga a todas as
actividades mentais não-imaginativas: fazer contas, ler, escrever, escutar uma
melodia, jogar xadrez e até recordar o passado. Nelas, o pensamento volta-se
para dentro, é verdade, mas vai agarrado a qualquer coisa, actual ou antiga,
que deveras existe, e não se dobra realmente sobre si mesmo. Há introspecção, de
facto, mas com corda e arnês. Não é por isso surpreendente, leitor aborrecido,
que as histórias que mais lhe interessam sejam aquelas que, agarradas ao terem
existido algures, vêm escritas em manuais de História ou, tendo acontecido a
alguém, foram passadas popularmente, de geração em geração, até chegarem aos
ouvidos dos modernos. Como perceberá o leitor que percebe alguma coisa, exerce
o Carlos o cinzento ofício de ser historiador.
Recordar o
passado é uma actividade útil e, como todas as actividades úteis, não tem
interesse para além da utilidade que tem. Nada do que se historiou acerca de
Ricardo III, por maior utilidade que tenha, pode ter mais interesse do que aquilo
que Shakespeare o fez dizer da sua própria pessoa. A História só interessa, querido
leitor, quando é mal contada. Só o que não aconteceu, ou o que aconteceu de
outra maneira, vale o empenho dos que contam coisas aos outros. Ninguém que
saiba empregar a curiosidade se interessa pelo que verdadeiramente aconteceu
porque o que aconteceu ou é enfadonho ou, por ter realmente acontecido, leva a
pensar na tristeza que há em já não poder acontecer.
Deve o leitor
interessado certamente saber que recordam os ouvidos imemoriais da sabedoria
colectiva, ouvidos que nada esquecem, que Afonso, o Sábio (Afonso X de
Castela), tendo certa vez escutado uma explicação acerca da complicada
matemática de que é preciso para se fazer a demonstração da astronomia de
Ptolomeu, afirmou que, se Deus, ao criar o mundo, o tivesse consultado, ele
teria recomendado uma coisa mais simples. Uma versão ligeiramente menos
destemida deste famoso enunciado, conquanto, ao que tudo indica, igualmente
apócrifa, deixou-a Carlyle registada, para usufruto autorizado da curiosidade
futura, no sétimo capítulo do segundo livro da sua biografia de Frederico, o
Grande. Aí, sugere Carlyle que Afonso, o Sábio, teria dito não o que dizem que
disse mas que, sendo o mundo uma coisa tão débil, era uma pena que o Criador
não se tivesse aconselhado antes de criá-lo.
Quando
alguém, mais ou menos destemidamente, consoante as versões, profere uma coisa
deste género, importa menos que deveras o tenha proferido do que a lembrança
propagada de boca em boca da ousadia com que o teria feito, se feito deveras o
tivesse. Não é, pois, por ter havido pronunciamento autêntico, mas por haver
lembrança do que talvez não tenha havido e gente que a propague que hoje se
recorda não o monarca que houve, mas o que ele pronunciou, se porventura o
tiver pronunciado. A História que verdadeiramente interessa a quem se interessa
por alguma coisa não é o que aconteceu, mas o que se disse que aconteceu depois
de ter acontecido; a História que verdadeiramente interessa – eis enfim a tese
– é toda ela apócrifa. Não recordamos de Tróia quem dentro dela deveras reinou
nem quem a destruiu, mas o velho Príamo, os gregos dentro do cavalo de pau e
tudo o que Homero apocrifamente nos disse que lá se passou. De Afonso, o Sábio,
fiquemos pois só com a convicção de que aquilo que possivelmente não disse foi
coisa por ele deveras dita – e contentemo-nos com o melhor que há na História,
que é o não ter ela havido.
Na
primeira das duas rubricas pelas quais responderá, “Res Scriptae”, Carlos da Gentileza Mendes recordará, pois, pedaços
do que realmente aconteceu. Não obstante o interesse que não podem ter, as pequenas
histórias que aí se juntarão convirão talvez a quem sofra da aborrecida mania
de ser coleccionador ou a quem, não podendo alimentar o espírito apenas com o
que realmente interessa, como alguém a quem o médico ordenou que comesse mais verduras,
tem de alternar entre aquilo com que se delicia e a dieta que lhe convém. Como
também se indigna, às vezes, com os maus usos que se fazem da língua, assinará
ainda a rubrica “Prima Facie”, onde comentará
equívocos, dará lições de etimologia e contará as origens de algumas expressões
populares. Em qualquer das rubricas, não se deve esperar que Carlos da Gentileza Mendes seja mais do que é.
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