Contou-me há dias um primo que não prezo,
mas que me escreve todos os anos, tão-só pelo hábito de fazê-lo, a desejar um
feliz aniversário e que conte muitos mais – coisas que as pessoas aprendem a
dizer pela vizinhança de umas com as outras – que sofrera naquela semana, por
uma coisa que lhe acontecera num transporte público, um abalo muito grande. O
episódio, a que deu andrajos de desgraça, causou em mim, no entanto, um abalo
de tipo bastante diferente. Se lhe respondesse à carta em que mo contou, coisa que
não farei por estimar mais os meus papéis do que a tagarelice com os outros,
dir-lhe-ia que a história que me relatou não suscitou em mim o terror e a
piedade a que o seu espírito foi levado, ao assistir ao que se passou, mas a
gargalhada mais despudorada a que pode alguém dar garganta. Como é possível –
perguntará o leitor perplexo – que um mesmo acontecimento produza tão
dissemelhantes reacções? Como é possível que uma pessoa calce os coturnos a uma
história que, segundo a opinião de outra pessoa, só tem pés para calçar socos?
O que aconteceu – e uso apenas palavras
minhas para informar o leitor daquilo que me contou o meu primo – pode ser
descrito, eximindo-se aquele que fala do decoro com o qual o convenceram que
devia falar, quando se trata de assuntos delicados, por um vocábulo que, desde
logo, mais puxa a risada do que comove e acarida: um trambolhão! Quem caiu – e aqui
a gargalhada, já a levedar desde que se falara no trambolhão, abeira-se das
portas da goela, pedindo para sair – foi uma velha. Diga lá o leitor
parcimonioso se, contada assim, a história não o diverte! Um bom contador de
histórias, caso não saiba, é como um pai habilidoso que, em poucos segundos,
transforma a choradeira de uma criança que tropeçou, caiu e magoou o joelho num
prazer silencioso dando-lhe para a mão uma guloseima com que se lambuze. Quando
o meu primo, na sua carta escusada, me contou esta história, contou-a
evidentemente noutros termos, dando expressão à aflição que sentiu. Mas eu li-a
como se a estivesse a contar, e que é pouco mais ou menos como a estou a contar
agora. E assim, pela habilidade da guloseima, o que no contador de histórias é
o talento para contá-las ou a faculdade a que os românticos chamavam imaginação,
a aflição dele transformou-se instantaneamente em divertimento.
Quando posto deste modo, só não acha
engraçado um trambolhão de uma velha quem trava a saída esbaforida da gargalhada
com as trancas da boa educação, impedindo assim a convulsão orgânica do riso
pelo artifício de pensar na acção de rir. Quem o faz, acha, por isso, que há
mais dignidade em ser sério do que em ser honesto. Faça-se o exame singular de
pôr velhas a dar trambolhões diante de todo o tipo de gente: das bocas das
crianças, dos tolos e dos desavergonhados, por não saberem ainda que,
socialmente, é mais importante não rir do que não mentir, por não terem como
sabê-lo ou por lhes faltar o pejo com que pudessem pôr em prática o que sabem, as
gargalhadas sairão com naturalidade. Trambolhões de velhas são como cócegas em quem
as tem: provocam necessariamente o riso. Claro está que uma pessoa pode
precaver-se facilmente dessa necessidade andando sempre de peúgas nos pés. Tal
batotice, porém, não a torna imune ao riso; se alguém mais forte a agarrar, lhe
tirar as precauções dos pés e neles passar uma pluma, desde o calcanhar até aos
dedos contraídos, essa pessoa torcer-se-á de tanto rir. De igual maneira, tirem
os bons modos e os escrúpulos a quem os tem calçados e ninguém haverá que, ao
ver um trambolhão de velha, seja capaz de reter dentro de si a irreprimível gargalhada
que ele exige.
Pensará o leitor, abanando a cabeça com
razão, que, com certeza, podemos rir muito de velhas a cair, desde que não as
conheçamos nem saibamos de que males depois enfermaram, e que, portanto, a tese
a que tenho estado a dar explicação, não é tão contra-intuitiva assim. Mas –
pelo cão! – acha que já lhe disse tudo o que o meu primo me contou? Até agora,
a única coisa que divulguei foi que uma velha deu um trambolhão. Depois disso,
levantaram-se dos seus lugares todos aqueles que, como o meu primo, se
afligiram com o estrondo da queda e mais ainda com os gritos de aflição da
velha, e acercaram-se dela para ajudá-la a levantar-se todos aqueles que, ao
contrário do meu primo, não se voltaram a sentar para não perderem os lugares.
Estará decerto escrito – caro leitor – em algum versículo pouco lido de algum
manual de moralidades pouco célebre, que não devemos rir da desgraça alheia,
que é desumano não nos compadecermos de quem se aleija a sério, que é
obrigatório ajudar quem precisa de ajuda, desde que isso não prejudique o
conforto do rabo no autocarro. Enfim, o meu primo não foi dos que foram tentar
guindar a velha – aliás, muito gorda, o que é sempre uma característica
engraçada, mais uma, em velhas que caem – mas ficou a assistir a tudo,
condoído.
Quando o chauffeur se apercebeu, pelo pânico das pessoas, mas sobretudo
pelos gritos de “ai que morro aqui!” com que a velha ia assustando os restantes
passageiros, que a travagem brusca a que fora forçado ainda há poucos instantes
produzira aquele efeito inesperado, encostou à berma e parou. Alguns minutos
depois, haveria de chegar uma ambulância; um pouco mais tarde, o primeiro
diagnóstico, pouco convicto, iniciado pelo socorrista que imobilizou a velha e
passado de boca em boca por toda a gente, de que talvez fosse uma anca
fracturada, o que, com aquela idade e aquele peso, valha-nos Deus!, era dano
para o resto da vida, era ficar, desgraçadinha!, para sempre numa cadeira de rodas,
ou pior, deitada numa cama… O meu primo contou tudo isto com emoção; eu, como
já disse, ri muito. Ri – leitor mal-encarado – porque um trambolhão de uma
velha é, por si só, muito divertido, como expliquei, mas também porque não
resisto – e não devia resistir quem quer que tenha pelo intelecto, que é o que
faz dos homens as criaturas que são, o justo apreço – a rir da desventura de
quem é estúpido. É que, como também me contou o meu primo, a velha fora todo o
caminho, até ao momento da travagem, de pé, segurando-se apenas com uma mão, já
que a outra estava ocupada a segurar o telefone, para o qual berrava, a incomodar
tudo e todos com os mexericos da irmã e do cunhado, e recusara várias vezes,
por estar quase a chegar a paragem em que saía, a oferta do assento, no qual
recomendavam que acomodasse as carnes para não cair.
Os espartanos, lembra Carlyle pela voz
do professor Teufelsdröckh no Sartor
Resartus, davam caça aos helotes, a classe de servos em Esparta, sempre que
os seus números engordavam. Não como modo de regular o aumento populacional e
evitar revoltas mas para acabar com a pobreza, sugere o mesmo professor que
seria utilíssimo à higiene da sociedade que se perdessem três dias por ano a abater
os pobres que se tivessem acumulado ao longo desse ano. A operação de limpeza,
de resto, não acarretaria custos públicos, devendo as carcaças dela resultantes
ser salgadas, enlatadas e dadas a comer a quem tivesse fome. Ora, só muito
raramente um servo ou um pobre o são por responsabilidade própria; quem é
estúpido, porém, deve ser responsabilizado pela sua estupidez. Se me parece
injusto, por isso, que servos e pobres mereçam o extermínio, e é exagerada e
desumana quer a política preventiva dos espartanos, quer a medida, não obstante
a ironia dela, do professor Teufelsdröckh, uma sociedade que tivesse o bom
costume de exterminar a estupidez seria uma sociedade melhor. Enquanto não
chega o dia em que um estúpido, andando pela rua desprecavido, for apanhado e
levado à força para um açougue onde lhe dêem sentença e o fatiem para fazer
fiambres, gelatinas e todo o género de polpas enlatadas com que se alimente
caridosamente quem não pode comer melhor, é pois dever de quem quer que respeite
mais o que é justo do que o que é comovente rir-se muito de qualquer que seja a
infelicidade que se abata sobre quem é estúpido. Eis-me, ora pela estética da
queda, ora pela ética da justiça dela, absolvido de ter rido.
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