Depois do choque dos atentados
terroristas contra as satirazinhas do jornal francês, de cuja condenação poucos
se excluíram, o mundo começou, pouco a pouco, a regressar à normalidade. Sem
grande espanto, boa parte dos Carlinhos que, a quente, repudiaram sem rodeios o
acontecimento, passaram a justificar a infâmia através da insensatez ou das
injúrias a que os desenhadores amiúde se entregavam. Mesmo que não tenham
desculpado os assassinos, desculparam-lhes certamente a irritação. Na cabeça de
quem pensa assim - caríssimo leitor – a acção de espingardar contra os outros é
inaceitável, mas o estado de espírito que antecipa e leva a pegar em espingardas
é compreensível e justo. A fronteira entre o perdoável e o imperdoável, para a
maioria dos homenzinhos e das mulherzinhas que sobre isto tiveram a
oportunidade de dizer alguma coisa, está naquilo que distingue o fazer do
pensar fazê-lo; o que não admite perdão, portanto, não são os crimes
propriamente ditos, mas a incapacidade de açaimar o ódio despertado pelas
provocações alheias.
Pouco interessa, para os fins
a que este texto se atira, que a imprecisão me leve a falar em espingardas e
não nas armas com que realmente as coisas aconteceram. Aqueles que pensam como
acima descrito, aliás, preocupam-se menos com disparos do que com desaforos.
Não é, pois, sobre andar aos tiros aos outros que importa pôr a análise, mas
sobre a indignação que é devida a cada um quando um conhecido ou um estranho
diz mal daquilo que nos é querido. Como adivinhará o leitor em quem a
perspicácia se encontre adubada, este texto não é sobre fundamentalismo
religioso, nem sobre terrorismo, nem sobre liberdade de expressão, nem sobre
valores culturais manifestamente incompatíveis. Não é sequer sobre aquilo que
se passou em Paris nem sobre o que acerca disso muito particularmente se disse.
É, sim, sobre uma certa maneira de pensar, uma maneira de pensar muito
generalizada que, quando usada para fins de exame moral, escrupulosamente
aproxima quem a ela se entrega daqueles que andam aos tiros em nome de maomés
pintados.
Decorre da convicção de que
desenhos, opiniões ou mesmo ofensas em geral sejam coisas que podem irritar os
outros e que, por isso, merecem repúdio, uma antropologia de aleijadinhos de
que poucos se dão conta. Ficar ofendido não é como pisar uma mina e ficar sem
uma perna: normalmente, passa após algum tempo, mais nuns casos e menos
noutros, consoante a própria ofensa e, sobretudo, o orgulho e a
susceptibilidade de cada um. Quando alguém ou alguma coisa nos ofende, não
perdemos nada, portanto, que não possamos recuperar. Mas ficar ofendido também
não é como ser mordido por uma melga a que se dá caça de seguida para nos
vingarmos da mordidela e para que não volte a morder-nos. Uma ofensa não morde
como uma melga, e dela não se segue uma irritação cutânea a pedir a reacção de
coçá-la. Ser alvo de uma ofensa não é sequer idêntico a apanhar uma chuvada.
Quando os céus humilham os desprevenidos, fazendo chover onde eles estão e quando
eles menos esperam, provocam neles o desconforto húmido de os deixar menos
secos do que pretendiam, coisa de que nenhuma ofensa, por mais ofensiva que
seja, tem o poder. Minas que estropiam, melgas que mordem e chuva que molha são
coisas que, definitiva ou provisoriamente, modificam fisicamente quem somos. Só
pondo a convicção numa antropologia de índole espiritual – leitor compreensivo
– uma antropologia que considere que o homem se distingue dos outros bichos por
ter extremidades nervosas naquilo a que vulgarmente se chama espírito, se pode
achar que ofensas sejam coisas que causam efeitos em pessoas; só aceitando,
portanto, que todo o homem se aleija quando o injuriam, pode alguém sustentar a
relação causal entre um desaforo e uma bofetada em quem o profere.
Tirando os psicólogos e os que
levam as psicologias a sério, pessoas que tendem a acreditar nessa relação
causal para manter o emprego ou para justificar a cobardia, só subscreve este
género de antropologia ou quem educou as ideias na companhia destes dois tipos
de pessoas ou quem as educou na companhia de padres, amigos místicos ou
bêbedos, isto é, na companhia de gente para a qual a dignidade das pessoas se
encontra à superfície da pele e é tão frágil quanto uma peça de cristal. Para
estes três tipos de pessoas – psicólogos, cobardes e estúpidos – o homem é,
psíquica ou espiritualmente, como se preferir, uma criatura tão indefesa e tão
aleijadinha que qualquer brisa primaveril, ao soprar levemente, lhe ataca o
reumatismo que desenvolveu no orgulho. A Humanidade, vista pelos olhos de quem
assim pensa, é um conjunto de leprosos da alma, de Lázaros choninhas que é preciso
proteger pelos remédios santos da psicologia, da cobardia ou da estupidez. Como
certamente diria o meu mestre, um daqueles raros mestres de gente com
capacidade para ter mestres, já era altura – leitor subitamente interessado – de
as pessoas deixarem de se preocupar com as garotices a que os outros se prestam.
Ficar ofendido pelo que os
outros dizem ou fazem não é diferente de ficar ofendido com um grilo que canta
no silêncio da noite, com o vento que sopra lá fora ou com os primeiros raios
de sol que, começando a espreitar pelo parapeito do horizonte, dão em dissipar
as trevas e em dificultar o sono a quem dorme. Nem mesmo àqueles que punham a
crença em hamadríades e afins, para quem estes incómodos eram antigos deuses caídos
a expiar pelo canto o castigo das suas metamorfoses, Zéfiros arreliados e
Hélios ou Apolos puxando por dever a carruagem dourada que lhes pertence,
passaria pela cabeça ficarem ofendidos por algo que, por mais que os
aborrecesse, não lhes dizia respeito. Tal como criquis de grilos, ventos e
raios luminosos são coisas que, não obstante as faculdades auditivas, tácteis e
visuais com que os percepcionamos, dizem respeito aos grilos, aos ventos e ao
sol, qualquer desaforo que nos dirijam, não obstante a faculdade intelectual
com que entendemos que nos é dirigido, diz respeito apenas a quem o profere. Do
facto de termos audição, tacto, vista e entendimento com que ouvir, sentir, ver
ou entender o que quer que seja não se segue senão que ouvimos, sentimos, vemos
e entendemos o que se passa à nossa volta. Começamos a enfermar no momento em
que nos apropriarmos do que quer que ouçamos, sintamos, vejamos e entendamos: esta
enfermidade, seja ela qual for, é certamente uma forma de paranóia.
Todos aqueles que consideram
que a vontade de andar aos tiros é compreensível em quem é alvo de insultos, e
que o erro dos que andam de facto aos tiros, não aferrolhando essa vontade
dentro de quem são, é andar aos tiros e não o terem vontade disso, sofrem da
paranóia particular de achar que o mundo que os rodeia lhes pertence. Tal
estado clínico, como antecipei acima, faz de quem assim crê um aleijadinho
muito parecido com a espécie de aleijadinhos que não tem pejo de andar aos
tiros. Pese embora o pejo, ou a falta dele, que os distingue, é gente de laia
parecida; fora o travão moral, a timidez ou o que mais haja com que escapam a
tornar-se a pessoa que dentro deles já são, há em ambos a mesma enfermidade de
julgar que o mundo que lhes é externo é propriedade interna de quem são e que
todos os acontecimentos que nele se dão, desde um zumbido de mosca à mais
remota glória do universo, são toupeiras a escavar no quintal que lhes pertence
e às quais é justo dar em cheio com uma pá.
As pessoas são aquilo que
pensam, não aquilo que fazem. Como explicou o preceptor do mais distinto de
entre os macedónios, não é a acção corajosa que faz o corajoso, mas a coragem
que há em potência no seu carácter e que se actualiza na acção. Se assim não
fosse, não haveria maneira de distinguir quem é corajoso a sério de quem o é
por acidente, nem haveria diferença entre aquele que arrisca a pele para salvar
o rebanho de um redil em chamas a pensar no prejuízo que terá se não o fizer e
aquele que o faz por amor à bicharada. As pessoas não são os cachecóis a que
dão forma em noites de inverno, mas os novelos a partir dos quais os tricotam
exteriormente. Os cachecóis dos ofendidos que pegam em armas para vingar a
ofensa podem ser muito diferentes dos cachecóis com que protegem o pescoço
tímido aqueles que não permitem que a ofensa lhes tome as rédeas de quem são,
mas é do mesmo emaranhado de fios escarlates que saem diferentemente
tricotados. Padecem estes dois tipos de pessoa da mesma enfermidade, e só pela
contingência de não a medicarem de modo igual ela se manifesta de forma
distinta. A mesma quantidade de intolerância que leva os primeiros a fazer
aquilo que envergonha quem quer que fale abunda nos segundos, ainda que a
vergonha que não falta a estes os trave de serem o que, faltando-lhes, sem
dúvida seriam.
Quando se sugere a expatriação
dos que, pelos fundamentalismos lá deles, não percebem que é ocidentalmente
inaceitável cometer as atrocidades que em privado é justo que idealizem,
comete-se o erro, aliás muito vulgar, de achar que as pátrias, sobretudo as
ocidentais, são lugares mais saudáveis quando habitadas por gente que tenha os
impetozinhos domesticados. É preciso dizer – leitor indignado – que não o são.
Admitindo que um lugar é mais saudável quando mais tolerante e mais enfermiço
quando menos, não é expatriando os intolerantes que manifestam exteriormente a
sua intolerância e condescendendo com os intolerantes que a refreiam dentro de
si, isto é, expatriando uns enfermos e deixando outros, que se melhora a
higiene duma pátria. O século que passou, de resto, demonstra irrefutavelmente que
uma pátria não é mais higiénica por ter menos gente doida e mais vontades
contidas. Haja a coragem de afirmar que só expatriando todos os que se ofendem
e acham normal que uma pessoa se ofenda com vapores é possível livrar uma
pátria dos aleijadinhos que a povoam. Expatriar por expatriar, expatrie-se
antes quem é enfermo!
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