24/02/2014

In Hoc Tempore - Columbofobia



Não obstante os tempos de crise, já deve o caríssimo leitor ter reparado que tem proliferado, nos últimos meses, a nobilíssima profissão dos músicos ambulantes. Estes indivíduos, que antes de serem músicos eram coitados, e que antes de serem coitados devem ter sido aprendizes de coitado, não nasceram certamente a saber do ofício musicado. Primeiro – creia o leitor – tiveram com certeza de notar que em maltrapilhos sentados em vão de escada, berma suja ou rua por onde passa quem anda nem quem por acidente neles tropeça neles repara. De seguida, tiveram de aprender também, ainda preguiçando na posição sentada, que gemer quando alguém aparece mais afugenta que atrai. Da descoberta de que sem esforço não há recompensa passaram decerto a descobrir que dobrar-se na direcção de quem vem a chegar, de preferência ralhando qualquer coisa ao mesmo tempo, obriga o transeunte apressado a assustar-se.
Animados pela sabedoria prática que a si mesmos assim iam educando, descobriram depois - acredite em mim, leitor desconfiado - que a posição erecta mais facilmente excita a caridade de quem passa e que, pela dedicação da mão em concha pedindo moeda ou côdea, de uma lamúria e do atrevimento de repetir, romenamente ou não, a ladainha de miserável a quem não dão o que merece, só não prospera quem for tolo. Como que não bastando, deram então em perceber que, por passiva que era, da actividade de esmolar mais lucro se teria se atrás de quem o vil metal na lata lhes despeja se pudesse constantemente andar. Uma vez que andar atrás de outros é negócio exclusivo de larápio, para que a actividade de pedinchar não fosse confundida com outras menos nobres teve então de se pensar no que dar em troca de assim pedir enquanto se persegue. E foi deste modo que, depois de muitas descobertas, se descobriu que, andando a musicar os dias às pessoas, se estava sempre perto de quem contribui para o tilintar da lata sem que, ao mesmo tempo, parecesse que a vida de quem musica dias depende de quem por isso lha sustenta; desse modo se descobriu, por outras palavras, que é mais respeitável ser artista do que ser mendigo.
Convenha o leitor que, muito cordatamente, concorde que merece pagamento toda a música que se ouve, que são os que querem ouvir música que costumam ter de se deslocar para ouvi-la e não o contrário. Quem anda de transportes públicos, sabe todavia que há artistas contemporâneos que, em vez de esperarem em salas de espectáculo por fãs que berrem por bis, andam indiscriminadamente por aí, de instrumento na mão, a tocar o sol-e-dó a quem não pagou bilhete para ouvi-los. A moda, aliás, é o adolescente, de cão esfomeado ao ombro, entre os dentes do qual vai segura a caixa onde devem cair os trocos, a tocar a concertina (se bem que haja a variante mais recente, inspirada na outra, do adulto tocador de acordeão ou pandeireta, à frente do qual surge uma ou duas crianças por lavar a fazer a vez do cão ao ombro). Entre tantas descobertas, de algum jeito devem ter descoberto também estes artistas que de criança ou bicho a quem falte nitidamente comida e banho se comiseram muito mais os que têm moedas com que saciar a comiseração.
Sejam de que espécie forem, estando mais ou menos na moda, artistas que levam o concerto até ao público, seja para lhe cobrar o tê-lo escutado, seja apenas para que lhe aplaudam o talento de outro modo desconhecido, não são bem artistas como aqueles cuja preocupação é estarem quietinhos num palco a fazer o que bem sabem. Uma das características menos notadas de quem é artista - deve o leitor reconhecer - é não ser inoportuno. Aliás, não havendo melindre em abdicar do eufemismo, um artista inoportuno, um artista cuja actividade se cumpre quando não é oportuno que se cumpra, não é artista; é vândalo. Quando se admira um pintor, um escritor ou um músico, admira-se-lhe, entre outras coisas geralmente mais admiráveis, o terem onde pintar, escrever ou musicar, e o não aparecerem em casa de quem os admira a qualquer hora do dia para lhes fazer um retrato, compor um soneto ou gritar aos ouvidos. Artistas inoportunos em geral e artistas inoportunos cujo interesse é menos o pretexto da música que tocam do que a comiseração que andam a tentar excitar nos outros são, na verdade, menos artistas a sério, artistas cujo talento merece certamente recompensa, do que pombos infectos buscando os farelos que um qualquer reformado, sentado num banco de jardim numa quarta-feira à tarde, atira para o chão apenas para não se sentir sozinho e inútil.
Sou da opinião, caríssimo leitor, que tais artistas só existem porque há reformados que, ignorando a higiene pública, passam as tardes a esfarelar pão para terem ao pé deles amiguinhos de penas. A única coisa que a comiseração consegue, seja ela em forma de migalhas espalhadas pelo chão, seja em forma de patacos deixados em caixas de esmolas, é aumentar o número dos que excitam a comiseração. Quando um pombo se apercebe que outro pombo, pelo acaso de estar no sítio certo, com bicadas sucessivas recolhe do chão as migalhas que vai encontrando, logo em voo picado desce dos céus, muitas vezes trazendo atrás todo o bando, para de maneira idêntica se banquetear. Pelo cão!, se proliferam os músicos ambulantes, é porque há quem lhes alimente o jeito para pombo.
Seria a columbofobia destas linhas um argumento de direita, como certamente parecerá a quem tem por pombos e coitados mais estima do que saber que existem, se não fosse, efectivamente, um argumento de esquerda. Não se esqueça o leitor distraído de que comecei por contar uma história de aprendizagem de acordo com a qual alguns coitados, por iniciativa própria, se transformaram em músicos ambulantes de sucesso, e que acabei a comparar os últimos a pombos que, esquecendo a digna vocação de pombo, interrompem o bater de asas para vir cobiçar o lanche de alguém. Das palavras que acabo de proferir não se extraia, pois, a moral que lá não está. Não é contra coitados nem contra pombos em geral que estou, mas contra a iniciativa privada de alguns coitados e alguns pombos. Perdoe-me a frontalidade – leitor estimado – mas coitados que, empreendendo, deram em músicos ambulantes não só caíram no vandalismo de andar a dar música a quem não pediu para ouvi-la como, muito darwinianamente, ameaçam a sobrevivência dos coitados que, não andando a vandalizar ouvidos para comer, acham que miséria não é circo.
Argumentará opostamente quem acha que todo o trabalho é virtude que merece esta gente o respeito de quem por ela passa pelo simples facto de andarem, pelo menos, a fazer pela vida. Ouço bem, combativo leitor? Fazer pela vida? E o carteirista que, aproveitando o excesso de gente pendurada em transportes públicos aos solavancos, leva a mão atrevida ao bolso do primeiro turista que apanha, não anda também ele, com os talentos que tem, a fazer pela vida como bem sabe? Já dizia o pobre Falstaff, desculpando-se do jeito para ladrão, que não é pecado um homem trabalhar naquilo para que tem vocação. Merece menos, por ser esse o seu ofício e por não ter ficado em casa a preguiçar, a acusação de andar a fazer o que não deve? E que interessa, para efeitos do que aqui condeno, que andar a tirar coisas de bolsos alheios seja punido por lei e andar a fingir de pombo não o seja?Não critico as infracções à lei de ninguém, pois é à polícia que cabe fazê-lo. Também não critico, embora não pareça, que tente quem é coitado enganar quem não o é fingindo serartista, pois deve ter a liberdade de tentá-lo.
Lembre-se o leitor aborrecido de que, como o disse antes, o vândalo só é vândalo porque há quem lhe pague o vandalismo.São os reformados que deitam migalhas ao chão, não os pombos que as debicam, que na verdade merecem a reprovação. O problema das iniciativas privadas não está, pois, naqueles que as têm, mas naqueles que, esmola a esmola, lhas sustentam. Pouca coisa haverá que caracterize melhor a estupidez das massas, agora que largaram o antigo ópio, do que não saberem distinguir quem é artista de quem é vândalo. E é justamente dessa incapacidade que se aproveitam aqueles a quem, faltando a nobre faculdade de se orientarem cegamente nos ares, agrada passar o dia de asas recolhidas a cirandar entre quem lhes proporcioneo pouco conforto a dar à barriga. Que houvesse pombos infectos em parques era mal com que era preciso aprender a lidar; que essa espécie madraça e suja tenha sobrevivido às outras, por acção indirecta de quem, alimentando-a em troca de companhia, lhe tornou propícia a existência madraça e suja, e que todos os pombos que agora há tenham estendido a todo o lado o costume, antes exclusivo de parques, de suplicar por merenda é que me parece que era desnecessário.
 

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