Não obstante os tempos de crise, já deve o
caríssimo leitor ter reparado que tem proliferado, nos últimos meses, a
nobilíssima profissão dos músicos ambulantes. Estes indivíduos, que antes de
serem músicos eram coitados, e que antes de serem coitados devem ter sido
aprendizes de coitado, não nasceram certamente a saber do ofício musicado.
Primeiro – creia o leitor – tiveram com certeza de notar que em maltrapilhos
sentados em vão de escada, berma suja ou rua por onde passa quem anda nem quem
por acidente neles tropeça neles repara. De seguida, tiveram de aprender
também, ainda preguiçando na posição sentada, que gemer quando alguém aparece
mais afugenta que atrai. Da descoberta de que sem esforço não há recompensa
passaram decerto a descobrir que dobrar-se na direcção de quem vem a chegar, de
preferência ralhando qualquer coisa ao mesmo tempo, obriga o transeunte
apressado a assustar-se.
Animados pela sabedoria prática que a si mesmos
assim iam educando, descobriram depois - acredite em mim, leitor desconfiado -
que a posição erecta mais facilmente excita a caridade de quem passa e que,
pela dedicação da mão em concha pedindo moeda ou côdea, de uma lamúria e do
atrevimento de repetir, romenamente ou não, a ladainha de miserável a quem não
dão o que merece, só não prospera quem for tolo. Como que não bastando, deram
então em perceber que, por passiva que era, da actividade de esmolar mais lucro
se teria se atrás de quem o vil metal na lata lhes despeja se pudesse
constantemente andar. Uma vez que andar atrás de outros é negócio exclusivo de
larápio, para que a actividade de pedinchar não fosse confundida com outras
menos nobres teve então de se pensar no que dar em troca de assim pedir
enquanto se persegue. E foi deste modo que, depois de muitas descobertas, se
descobriu que, andando a musicar os dias às pessoas, se estava sempre perto de
quem contribui para o tilintar da lata sem que, ao mesmo tempo, parecesse que a
vida de quem musica dias depende de quem por isso lha sustenta; desse modo se
descobriu, por outras palavras, que é mais respeitável ser artista do que ser
mendigo.
Convenha o leitor que, muito cordatamente, concorde
que merece pagamento toda a música que se ouve, que são os que querem ouvir
música que costumam ter de se deslocar para ouvi-la e não o contrário. Quem
anda de transportes públicos, sabe todavia que há artistas contemporâneos que,
em vez de esperarem em salas de espectáculo por fãs que berrem por bis, andam
indiscriminadamente por aí, de instrumento na mão, a tocar o sol-e-dó a quem
não pagou bilhete para ouvi-los. A moda, aliás, é o adolescente, de cão
esfomeado ao ombro, entre os dentes do qual vai segura a caixa onde devem cair
os trocos, a tocar a concertina (se bem que haja a variante mais recente,
inspirada na outra, do adulto tocador de acordeão ou pandeireta, à frente do
qual surge uma ou duas crianças por lavar a fazer a vez do cão ao ombro). Entre
tantas descobertas, de algum jeito devem ter descoberto também estes artistas
que de criança ou bicho a quem falte nitidamente comida e banho se comiseram
muito mais os que têm moedas com que saciar a comiseração.
Sejam de que espécie forem, estando mais ou menos
na moda, artistas que levam o concerto até ao público, seja para lhe cobrar o
tê-lo escutado, seja apenas para que lhe aplaudam o talento de outro modo desconhecido,
não são bem artistas como aqueles cuja preocupação é estarem quietinhos num
palco a fazer o que bem sabem. Uma das características menos notadas de quem é
artista - deve o leitor reconhecer - é não ser inoportuno. Aliás, não havendo
melindre em abdicar do eufemismo, um artista inoportuno, um artista cuja
actividade se cumpre quando não é oportuno que se cumpra, não é artista; é
vândalo. Quando se admira um pintor, um escritor ou um músico, admira-se-lhe,
entre outras coisas geralmente mais admiráveis, o terem onde pintar, escrever
ou musicar, e o não aparecerem em casa de quem os admira a qualquer hora do dia
para lhes fazer um retrato, compor um soneto ou gritar aos ouvidos. Artistas
inoportunos em geral e artistas inoportunos cujo interesse é menos o pretexto
da música que tocam do que a comiseração que andam a tentar excitar nos outros
são, na verdade, menos artistas a sério, artistas cujo talento merece
certamente recompensa, do que pombos infectos buscando os farelos que um
qualquer reformado, sentado num banco de jardim numa quarta-feira à tarde,
atira para o chão apenas para não se sentir sozinho e inútil.
Sou da opinião, caríssimo leitor, que tais artistas
só existem porque há reformados que, ignorando a higiene pública, passam as
tardes a esfarelar pão para terem ao pé deles amiguinhos de penas. A única
coisa que a comiseração consegue, seja ela em forma de migalhas espalhadas pelo
chão, seja em forma de patacos deixados em caixas de esmolas, é aumentar o
número dos que excitam a comiseração. Quando um pombo se apercebe que outro
pombo, pelo acaso de estar no sítio certo, com bicadas sucessivas recolhe do
chão as migalhas que vai encontrando, logo em voo picado desce dos céus, muitas
vezes trazendo atrás todo o bando, para de maneira idêntica se banquetear. Pelo
cão!, se proliferam os músicos ambulantes, é porque há quem lhes alimente o
jeito para pombo.
Seria a columbofobia destas linhas um argumento de
direita, como certamente parecerá a quem tem por pombos e coitados mais estima
do que saber que existem, se não fosse, efectivamente, um argumento de
esquerda. Não se esqueça o leitor distraído de que comecei por contar uma história
de aprendizagem de acordo com a qual alguns coitados, por iniciativa própria,
se transformaram em músicos ambulantes de sucesso, e que acabei a comparar os
últimos a pombos que, esquecendo a digna vocação de pombo, interrompem o bater
de asas para vir cobiçar o lanche de alguém. Das palavras que acabo de proferir
não se extraia, pois, a moral que lá não está. Não é contra coitados nem contra
pombos em geral que estou, mas contra a iniciativa privada de alguns coitados e
alguns pombos. Perdoe-me a frontalidade – leitor estimado – mas coitados que, empreendendo,
deram em músicos ambulantes não só caíram no vandalismo de andar a dar música a
quem não pediu para ouvi-la como, muito darwinianamente, ameaçam a
sobrevivência dos coitados que, não andando a vandalizar ouvidos para comer, acham
que miséria não é circo.
Argumentará opostamente quem acha que todo o
trabalho é virtude que merece esta gente o respeito de quem por ela passa pelo
simples facto de andarem, pelo menos, a fazer pela vida. Ouço bem, combativo
leitor? Fazer pela vida? E o carteirista que, aproveitando o excesso de gente
pendurada em transportes públicos aos solavancos, leva a mão atrevida ao bolso
do primeiro turista que apanha, não anda também ele, com os talentos que tem, a
fazer pela vida como bem sabe? Já dizia o pobre Falstaff, desculpando-se do
jeito para ladrão, que não é pecado um homem trabalhar naquilo para que tem
vocação. Merece menos, por ser esse o seu ofício e por não ter ficado em casa a
preguiçar, a acusação de andar a fazer o que não deve? E que interessa, para
efeitos do que aqui condeno, que andar a tirar coisas de bolsos alheios seja
punido por lei e andar a fingir de pombo não o seja?Não critico as infracções à
lei de ninguém, pois é à polícia que cabe fazê-lo. Também não critico, embora
não pareça, que tente quem é coitado enganar quem não o é fingindo serartista,
pois deve ter a liberdade de tentá-lo.
Lembre-se o leitor aborrecido de que, como o disse
antes, o vândalo só é vândalo porque há quem lhe pague o vandalismo.São os
reformados que deitam migalhas ao chão, não os pombos que as debicam, que na
verdade merecem a reprovação. O problema das iniciativas privadas não está,
pois, naqueles que as têm, mas naqueles que, esmola a esmola, lhas sustentam.
Pouca coisa haverá que caracterize melhor a estupidez das massas, agora que largaram
o antigo ópio, do que não saberem distinguir quem é artista de quem é vândalo.
E é justamente dessa incapacidade que se aproveitam aqueles a quem, faltando a
nobre faculdade de se orientarem cegamente nos ares, agrada passar o dia de
asas recolhidas a cirandar entre quem lhes proporcioneo pouco conforto a dar à
barriga. Que houvesse pombos infectos em parques era mal com que era preciso
aprender a lidar; que essa espécie madraça e suja tenha sobrevivido às outras,
por acção indirecta de quem, alimentando-a em troca de companhia, lhe tornou
propícia a existência madraça e suja, e que todos os pombos que agora há tenham
estendido a todo o lado o costume, antes exclusivo de parques, de suplicar por
merenda é que me parece que era desnecessário.
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