03/02/2014

Qui Sumus (2)



Quererá decerto saber a contemporaneidade que, involuntariamente passando, der com a vista nas palavras destes cinco homens incomuns, quem são, o que faziam antes de fazerem o que aqui fazem, e aquilo que, aleitando a curiosidade futura, podem deles esperar daqui para a frente. A primeira coisa que deve o leitor ficar a saber é que, se falar posso em nome de cada um, são todos eles muito distintos uns dos outros. Pelo absurdo que seria explicar com duas ou três frases aquilo por que se distinguem, contente-se quem puser leitura nestas linhas em acreditar no que lhe digo. São diferentes uns dos outros, e a seu tempo se perceberá como. Por agora, será útil ao mesmo tempo que é amável dar a quem lê as curtíssimas notas biográficas com que lhes foi pedido que apresentassem a pessoa que são, o que têm por costume fazer e em que moldes será o contributo que aqui pretendem regularmente deixar. Escolhido que fui para as reunir e fazer circular, não passaram por mim essas notas biográficas sem que lhes desse um cunho que não tinham. Fique, portanto, o leitor desde já avisado de que, se eu disser que fulano é isto e aquilo e, se por infelicidade se vier a comprovar que não é, é a mim e só a mim que deverá vir pedir contas. Para ser honesto, confesso que não fiz muito caso daquilo que quis cada um dos colaboradores do Sed Contra divulgar a respeito próprio, e que preferi dizer deles o pouco a que, pelo acidente de os conhecer – a uns melhor do que a outros, é certo –, posso dar apontamento. Começo, como começaria quem quer que se soubesse exemplo a seguir, por aquilo que há a referir acerca de quem sou, deixando para ocasiões vindouras o que de mais interessante houver a dizer dos colegas com quem divido a honra de aqui poder largar, com a frequência possível, a açucarada seiva de ser alguém.

Francisco Paiva Lacerda – foi assim que, por necessidade de baptismo, me fizeram chamar – aprendeu em pequeno que a atitude filosófica mais honesta é a de que todos estão errados até prova em contrário. Hoje, quando já se lhe agrisalha a fronte, é naturalmente um homem do contra, facto do qual muito se envaidece. É muito possivelmente por isso que não se lhe conhecem muitas amizades e que com ele se desaveio toda a sua família. Como o repete frequentemente, todos os grandes nomes da História, sem a ilustre excepção dos mais conservadores, torceram e recriaram as verdades dos seus antepassados, e nenhum homem que se tenha por inteligente obedece à educação que teve. Quando alguém lhe diz que, na época em que nasceu, ser do contra não é atitude especialmente rara, querendo com isso mostrar que mais valia ter a boa educação de concordar com as pessoas, depressa concede que haja hoje quem se distinga por ser sempre da opinião contrária, mas adverte quem antes o advertira para a subtil diferença que há entre ser do contra porque sim e ser do contra porque seria errado não sê-lo. A rabugice – argumenta depois – é um comportamento tão deplorável como o dos que obedecem alegremente, e seria inconsistência sua não ser também contra quem é dado às rabugens de garoto a quem tiraram o brinquedo preferido. Pede, por isso, a quem o leia que não o tome pelo rabugento que não é. Tudo aquilo que defende se justifica pela lógica do que diz, e é a lógica, não os nervos, o indicador apontado aos erros que deve contrariar.
Não admira, pois, que tenha pela consequência inevitável de todos terem mais ouvidos que miolos a mais enraizada das aversões. Numa nação de gente surda – acredita ele – seria mais difícil concordar com os disparates das outras pessoas, e haveria menos gente a dizer o mesmo que ouviu o vizinho a dizer, só porque o disse como quem sabe mesmo o que está a dizer. Não havendo, porém, razoabilidade em propor que se fure os tímpanos a quem ouve, já não seria mau que se desse alguma ginástica aos miolos de quem os tem para pensar. Na sua opinião, almas sem ideias que não as que tenham nascido da vizinhança com o mundo são almas às quais falta a substância de serem qualquer coisa. Ser alguém - di-lo como se de um axioma matemático se tratasse – é ser diferente daqueles que o rodeiam. Não obstante tanta irritação com quem assim perfilha os tiques dos outros, possui a infeliz gaguez de empregar ad nauseam, defeito que explica por questões de estilo, o artifício do vocativo para recordar ao “caríssimo leitor”, ao “leitor amigo” ou “à contemporaneidade compreensiva”, entre outras designações que bem podia dispensar, que é a quem lê e não a outra pessoa qualquer que se dirige naquele preciso momento. Acerca, contudo, da segunda característica expressiva do seu discurso a que não proíbe a repetição e o excesso, a de suplicar, jurar ou bradar por um cão cuja importância, dada a maiúscula com que o faz, não deve ser inferior àquela que tem, para um crente, a divindade que mais estima, pode asseverar a quem por isso alimente curiosidade que não o faz por influência do sapientíssimo marido de Xantipa mas por outra razão que não revela.
Na rubrica que assina, “In Hoc Tempore”, tentará mostrar que, para ver o que quer que seja, não basta abrir os olhos. Significa a frase anterior, para quem souber o que significam as coisas, que o mundo raramente é o que parece. Especialmente para aqueles que, torcendo o nariz à possibilidade de enxergarem tão mal quanto o velho Tirésias, a título de exemplo, a floresta que enxergam quando estão diante duma, pode fornecer como amostra do quão difícil é por vezes perceber uma coisa aparentemente simples um episódio autobiográfico, lembrando que foi um certo fascínio por aliterações, que entretanto perdeu, que o levou do único cordão umbilical que ainda o ligava à família, o apelido a que não renunciou, à descoberta de que o seu prato preferido era a açorda. Assim como só pelas habilidades retóricas se pode às vezes chegar às vontades da barriga, só por meios inesperados se pode às vezes ficar a saber o que é preciso que se saiba. É exactamente por isso que ver uma coisa depende pouco de poder enxergá-la, e é exactamente por isso que não há quem possa garantir que floresta que se enxergue – como a da terceira charada por que foi enganado o facínora escocês – não seja exército inimigo que avança.
 

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