Quando um poeta falece, os poetas
que ainda não faleceram têm por hábito elogiar muito a poesia do falecido. O
mesmo não acontece com a classe dos padeiros ou, para não se dizer que comparo injustamente,
com a classe dos larápios. Tal como seria bizarro que um padeiro que ainda não
faleceu elogiasse as carcaças de um padeiro acabado de falecer, é pouco
provável que haja larápio que, presente nas cerimónias fúnebres do larápio
falecido, se lembre de elogiá-lo antes de se lembrar de lhe larapiar o que quer
que lhe tenham posto nas algibeiras do fato com que vai para a cova. O fenómeno
é certamente explicável, mas seria decepcionante se, votando-me agora às manhas
da sociologia para demonstrar que faz parte da vocação de poeta elogiar outros
poetas, deixasse de lado o caso particular do poeta que deveras faleceu há dias
e cuja poesia foi elogiada por todos ou quase todos os poetas que, por razões
que cabe aos deuses explicar, ainda não faleceram. Que a poesia de Herberto
Helder não merece os elogios que recebeu, e que os poetas que o elogiam não
merecem, portanto, senão a consolação de ainda não terem falecido como ele, eis
o que a análise tratará de mostrar de seguida. Correndo o risco de estragar a
surpresa que o título, tendencioso como qualquer título, talvez tenha estragado
antecipadamente, nenhuns desses elogios são merecidos porque, apesar de o
considerarem poeta, melhor o consideraria quem o considerasse uma criança
tolinha. Para não maçar excessivamente quem leia, e porque revela o que há a
revelar de uma criança tolinha que acabou laureada a demonstração das tolices
de criança por que se destaca, das tolices púberes que lhe formaram o carácter
e das tolices adultas com que se explica o resto da sua existência, divido a
análise em três textos, cada um demonstrativo de cada um destes três géneros de
tolice. Importa ainda avisar, não vá alguém queixar-se de ter sido enganado ao
descer do pano do que ficar dito, que, sempre que chamar o poeta falecido ao
palco para mostrar o que sabe fazer, assim iluminando o que afirmo através da
ribalta da citação, me reportarei sobretudo à sua poesia inicial. Para o
efeito, ela me chega. Quem achar, porém, que a parte da obra assim aclarada não
representa o todo da obra do poeta, achando em propô-lo a má vontade ou a
vilania de quem o propõe, não deve esquecer-se de que aquele que, por
deformidade original, dá em nascer coxo a vida inteira passa a coxear. Em vez
de tentar provar-se atleta, melhor faria tal coxo, de resto, se respeitasse o
exemplo dado por quem assim nasceu e pusesse o empenho em “provar-se vilão”.
Mereceria com certeza outras palmas.
I – A CRIANÇA TOLINHA FEITA CAPITÃ
DE UM NAVIO SEM LASTRO
Para muita gente, um poeta é, acima de tudo, alguém que é capaz de tirar de
dentro de si o que quer que de profundo lá haja, seja isso pensamentos, emoções
ou simplesmente, sem que as palavras se façam compreender, derrames imateriais
a que se dá um aspecto verbal qualquer. Para quem pensa assim, um poeta não é,
portanto, muito diferente de um mágico que tira coelhos da cartola. O que se vê,
nos dois casos, são coisas a sair de onde não parecia possível que saíssem, e a
maravilha, num caso e noutro, está sobretudo no braço que as puxa e as
apresenta para aplauso. Comparo injustamente. Nenhum
mágico escaparia aos assobios se, em vez de coelhos puxados pelas orelhas,
tirasse da sua cartola trivial tufos de cabelo, taludas ou soldadinhos de
chumbo, coisas que se espera que lá haja, que se compreende que lá tenham sido
perdidas ou que, por questões de tamanho, se aceita que lá caibam. Não é o que
acontece, de um modo geral, com poetas. Quer tirem da cartola das suas alminhas
poéticas um poema, quer tirem de lá um conjunto de palavrinhas cuja arrumação
em linhas interrompidas faz supor um poema, é com ovações de pé que reage quem assim
os vê tirar.
Ao contrário do que acontece num número de magia, não interessa a quem
gosta incondicionalmente de poetas e poesias o truque em si, todos os passos
imperceptíveis e todos os segredos que tornam possível o que aparentemente era
impossível, mas o esforço, absolutamente secundário, no caso da magia, de tirar
coisas de um sítio. Ninguém a quem o juízo ainda não escapou tolera um mágico
que não seja capaz de cumprir a sua tarefa de mágico, que é enganar quem se
dispôs a ser enganado. Quem quer que pense, porém, que poesia é tirar coisas da
cartola de mágico que todos possuem é muito mais tolerante com poetas; ao
aceitar como maravilha a trivialidade de lhe ser dado a ler um poema que
facilmente cabe em qualquer cartola, tolera, pois, que o enganem não o
enganando. Perdoe-se a abrupta mudança de metáfora, mas ou esta gente é tolinha
e se maravilha, como qualquer tolinho que bate palmas, saltita e dá gritinhos,
com o que quer aconteça no mundo, desde passarinhos a cantar a cenas de
pancadaria na rua, ou acha que poetas são crianças tolinhas à frente das quais,
pela condescendência que merecem os tolinhos, se deve bater palmas, saltitar e
dar gritinhos sempre que elas conseguem levar a colher à boca sem ajuda.
Para quem quer que saiba que fazer poesia não é tirar coelhos de cartolas,
o corolário do raciocínio anterior não deverá certamente espantar. Ora, não por
acaso, foi justamente com um livrinho chamado A Colher na Boca, e portanto como uma criança tolinha, que se
apresentou ao público português, em 1961, o poeta há poucas semanas falecido. Escusam
de começar a praguejar, assim confirmando com os seus gritinhos os tolinhos que
também são, os poetas que, pela única razão de ainda não terem falecido, não se
abstiveram de elogiar nas últimas semanas a poesia de Herberto Helder. Antes
disso, façam o esforço a que talvez estejam menos habituados, tantas são as
energias postas em elogiar poetas que falecem e em praguejar contra quem não
condescende com tolinhos, de reparar na demonstração do que vai acima afirmado.
E não é preciso sequer um grande esforço, qualquer que seja o poema de Herberto
Helder a que deitemos a leitura, para que percebamos desde logo que algo de
esquisito se passa. Na terceira parte de “Elegia múltipla”, por exemplo, o
poeta descreve um homem “que corria pelo orvalho dentro”, o que se percebe,
embora não se aceite. O que é verdadeiramente esquisito, porém, é a estrofe que
se segue:
Não havia animal que no seu
pêlo brilhasse
assim na morte,
batendo nas ervas extasiadas
por uma morte
tão bela.
Porque as ervas têm
pálpebras abertas
sobre estas imagens
tremendamente puras.
Além da arbitrariedade empregada no momento de partir os versos, tão
constante em toda a sua poesia que seria absurdo, como tentam alguns, ao falar
em cadências próprias e ritmos respiratórios precisos, chamar-lhe outra coisa
que não um capricho, demonstra esta estrofe que, para Herberto Helder, é também
a arbitrariedade do poeta que define a lógica a que devem obedecer o sentido do
que diz e a sintaxe com que o diz. A sintaxe é arbitrária – começo pela terceira
arbitrariedade por requerer uma exposição mais curta – porque os últimos dois
versos, ao contrário do que indica a conjunção causal com que se inicia a frase
em que eles consistem, não expressam a causa do que acontece nos quatros versos
anteriores: não é, seguramente, por as ervas terem pálpebras como gente que os
animais não brilham enquanto batem em ervas e morrem. As pálpebras das ervas
não justificam a acção principal da frase anterior, mas o êxtase em que as
ervas se encontram no decorrer dessa acção, pelo que a conjunção causal é
empregue como a empregaria quem, em vez de poeta, fosse analfabeto. Como se
verá já a seguir pela exposição da segunda das arbitrariedades acima descritas,
é característico da dicção de Herberto Helder ligar ideias, fingindo de criança
a quem ainda não ensinaram a escrever, como bem lhe apetece. No que diz
respeito à sintaxe, pelos vistos, o tique é mais ou menos o mesmo. Mas passemos
à arbitrariedade que verdadeiramente interessa.
Ainda que se perceba a comparação de um homem a correr quando há orvalho a
cair com um animal cujo pêlo brilha, não se percebe, entre outras coisas, por
que motivo o animal está morto, por que motivo, ao morrer, bate em ervas, por
que motivo essa morte é “bela”, por que motivo as ervas são “extasiadas” e “têm
pálpebras abertas” ou por que motivo tais imagens são “tremendamente puras”. A
menos que a pureza de todas essas imagens esteja em não haver nada, no próprio
poema ou nos hábitos das pessoas, que é onde os leitores podem ir buscar a
informação com que completar o sentido ao que os poetas dizem, que
racionalmente as justifique. Nesse caso, todavia, talvez não seja pureza mas
tolice. Nenhum poeta pode desatar a personificar coisas só porque lhe apetece. As
ervas a que se reporta podem, de facto, ter “pálpebras abertas”, mas apenas se
o poema, por mecanismos de motivação interna ou por mecanismos de referência,
assim o justificar. O verso seria minimamente aceitável se, por exemplo, “pálpebras
abertas” fosse uma característica comum às ervas da poesia de Herberto Helder,
teimosia que talvez indiciasse a inclinação do poeta para o panteísmo; sê-lo-ia
também se a metáfora que consiste em fundir características de ervas com
características de olhos referenciasse qualquer coisa que, não tendo necessariamente
a ver com a poesia em que surge, um leitor normal, com maior ou menor
dificuldade, pudesse compreender; e sê-lo-ia ainda, por fim, se o próprio poema
em que o verso ocorre criasse as suas próprias condições de inteligibilidade. Caso
contrário, é um verso ao calhas.
Não parece haver razão válida alguma, para ser correcto com o poeta e com
quem o lê, para que as ervas de que Herberto Helder fala tenham “pálpebras
abertas”, pelo que seria mais ou menos igual, salvo as devidas diferenças dos
sons das palavras, afirmar que as ervas “gostam de ameixas” ou “são danadas
para a brincadeira”. Claro que, se as ervas fossem gulosas ou travessas, e não
capazes de ver, o verso final da estrofe já não seria aquilo sobre o qual elas
exercem a sua visão. Mas isso só justificaria o verso se lhe justificasse em
simultâneo a relação dele com o resto do poema e com o sentido dele. Não é o
que acontece, pois o poeta vai passando de uma imagem a outra sem se preocupar
em regressar a nada a que se venha prender tudo o resto: começa com a descrição
do corredor orvalhado; passa a compará-lo com um animal morto; fala em ervas
que vêem imagens puras; volta ao corredor e ao orvalho para dizer que “a sua
cara batia nas candeias” e “nas coisas gerais da manhã”, o que de algum modo sugere
ou a bebedeira do corredor ou que, ao contrário das ervas, corre com as
pálpebras fechadas; recorda então ter ouvido dizer “que os mortos respiram com
luzes transformadas”, o que também diz alguma coisa acerca da doidice das
companhias que cercam o poeta, e passa a sugerir, sem que nada o fizesse
prever, que o corredor está morto; aproveita a condição de morto do corredor
para dizer, sem que se perceba muito bem o dito, que a morte é passar “através
da porta, / para uma nova palavra”; menciona um homem que, não se sabendo já se
era o que corria e morreu, ou se era outro, “ficou deitado / com uma flecha na
fantasia”; e termina dizendo que esse homem, estando “tão morto que vivia
unicamente”, corria e “batia nos olhos das ervas / que fixam estas coisas puras”.
É verdade que chegamos ao fim do poema e percebemos que as ervas estavam
com as “pálpebras abertas” porque eram o público desta corrida de fantasmas. O
que não percebemos é por que é que uma corrida destas é uma coisa pura e merece
público. Ou, por outras palavras, não percebemos por que razão as ervas não
estavam melhor a comer ameixas ou a brincar como danadas. A sucessão trôpega
das imagens e a irracionalidade das poucas ligações entre elas que o poeta vai
generosamente deixando sugerem, aliás, que não estamos perante um poema mas
perante um sonho. Como demonstrarei de seguida, esta possibilidade não é coisa
que incomode Herberto Helder. Como poeta inspirado que se considera, está
convencido de que fazer poesia é obedecer a um certo transe e que, por conseguinte,
a diferença entre um poeta, por um lado, e um bêbado ou uma criança tolinha,
por outro, é, salvo as palavras que as distinguem, coisa nenhuma.
Daí que os seus poemas se caracterizem essencialmente pela falta de lastro
que caracteriza o raciocínio destes géneros de pessoas. A metáfora náutica é
justa e serve até de contrapeso – para manter a temática – às metáforas
deslastradas de Herberto Helder. Mostra, além disso, a diferença sempre
importante de notar entre um adulto que sabe falar e uma criança tolinha que só
consegue balbuciar. É que a poesia desta criança tolinha avança exactamente como
um navio que, sem lastro suficiente no porão que lhe dê estabilidade, se vira
assim que a primeira onda levantada por uma pequena borrasca lhe bate de lado
na proa. Cada uma das sucessivas metáforas injustificadas que Herberto Helder vai
introduzindo aumenta a instabilidade do poema que, sem o lastro da
inteligibilidade delas, vai sendo cada vez mais sacudido pela crispação do mar
para onde o poeta o quis levar. Poesia sem lastro não é poesia; é doidice! E um
poema que se faça ao mar sem o lastro da racionalidade – manejando agora os
dois termos da metáfora com a mesma destreza com que um capitão experiente manda
rectificar os ângulos das velas do seu navio para melhor aproveitar o vento que
o faça bolinar – é um poema ou que se destina ao naufrágio ou que, chegando por
acaso ao seu destino, chega contudo com as velas rasgadas, o mastro quebrado e
a tripulação atirada borda fora.
A fantasmagoria do poema e os maus costumes náuticos do poeta lembram
aliás, a quem souber o que lembrar e em que alturas lembrá-lo, as rimas com que
o velho marinheiro de Coleridge conta a desgraça que sobre ele se abateu depois
de matar um albatroz. Tal como o marinheiro expia o seu crime, dia após dia,
contando a história a um desconhecido, também Herberto Helder deve expiar,
poema a poema, qualquer maldade que fez. Sozinho no tombadilho do seu navio,
deixando o leme entregue aos caprichos dos ventos, se os houver, observa a
viagem e fica tão contente com as nuvens negras que se acastelam num céu de
trovoada como com o sinal, dado pelas gaivotas, de terra à vista. Cada verso
que escreve é uma guinada a bombordo ou a estibordo, conforme lho pedir a
maluquice do momento, e a rota que o poema traça é a que calhar ser traçada.
Como o explica o mesmo Coleridge no capítulo XVIII da sua Biographia Literaria, como que prevendo o mau marinheiro que
Herberto Helder viria a ser, um poeta que não regule o seu estilo pelos
princípios supremos da gramática, da lógica e da psicologia não é propriamente um
poeta, mas “um usurpador tolo e presunçoso dessa denominação”.
Vejam-se, como exemplo desta forma peculiar de navegar não o fazendo
realmente, alguns versos da sétima parte do poema “As Musas Cegas”. O poeta
fala de uma criança que, entre outras coisas, “dorme sobre os meus lagos de
treva”, “é uma coisa que está nos meus dedos” e “tem os pés na minha boca
dolorosa”, o que, tudo junto, ou significa doidice ou significa uma coisa pior,
e inicia a antepenúltima estrofe com a seguinte condição: “se ela um dia
adormecer com cerejas junto à / respiração pequena e sonhar (…)”. Mesmo aceitando
a hipálage que há em atribuir tamanho à respiração, por que motivo haveria uma
criança (ainda por cima uma criança que se mexe muito enquanto dorme, que é a
única coisa que se percebe dos outros versos citados) de dormir com cerejas
junto à boca? E de que modo ter adormecido assim, sem um adulto que lhe tirasse
as cerejas dali antes que se engasgasse com elas, influencia os sonhos que
pudesse ter? Ou o verso foi escrito às cegas, como as Musas que dão título ao
poema, ou foi escrito ao calhas, podendo portanto ser substituído por qualquer
outro que, tendo aparecido primeiro na cabeça poeta, decerto faria as vezes
deste. Seja como for, se há criança que não sabe o que faz – e é provável que
seja disto que o poeta quer que nos apercebamos – é aquela que comanda o
talento de Herberto Helder.
Não se pense que exagero e desconverso. A relação entre crianças e poetas é
abertamente declarada por Herberto Helder e, aliás, muitíssimo evidente na
sexta parte de “Elegia Múltipla”. Segundo aí diz o nosso poeta-criança, “as
crianças criam” e “inspira-as / a velocidade da terra”; também se fica a saber
que “as crianças enlouquecem em coisas de poesia” e que é delas que “um poema
tira / por um lado apaixonamento; por outro, / purificação”; por fim,
percebe-se que “nada mais somos do que o Poema onde as crianças / se distanciam
loucamente”. O que quer que inspire os poetas – é isto que, não sendo dito com
a clareza que se deseja, está a ser insinuado – é o mesmo que inspira as
crianças. Se à conclusão da falta de lastro se chega pela dedução a que a
análise das metáforas do poeta impele quem analisa, à conclusão de que a
capitanear o seu navio sem lastro Herberto Helder deixou uma criança chega-se,
portanto, porque o poeta o diz. De igual modo, lê-se o seguinte, a dada altura
da quinta parte de “O poema”: “eu abaixava-me e tomava como nos braços / essa
criança ignota”. Embora o pronome demonstrativo indicie uma criança ignota à
qual o poeta já se reportara, não há no poema outra referência que permita ao
leitor saber a que alude. Uma vez que o verso se segue a um conjunto de versos
que, apesar da vagueza, parecem referir-se de novo à inspiração do poeta, só é
possível remediar a falta de lastro, aqui tão flagrantemente denunciada por um
demonstrativo de coisa nenhuma, estipulando que a criança ignota do verso tem
alguma coisa a ver com a inspiração que lhe deu forma. Assim se demonstra quer
a criancice da inspiração de Herberto Helder, quer a criancice de achar que
fazer poesia é imitar comportamentos de criança.
A falta de lastro de que sofrem os seus poemas é assim justificada pela
inclinação para a criancice. Para Herberto Helder, explicar o suficiente para
que um adulto normal consiga perceber o que diz é tempo perdido que podia
gastar com brincadeiras menos aborrecidas. É essa a conclusão a que a análise
dos seus versos, se feita por quem estima a diferença entre poetas a sério e
gente que foi à escola, inevitavelmente conduz. Como criança que brinca e, ao
brincar, não pensa se o adulto que o observa com inveja percebe ou não a
brincadeira, que atira com um boneco para longe não porque simule um desterro
ou um amuo mas porque, havendo outros bonecos, não lhe faz falta aquele, que
risca furiosamente uma folha de papel com vários lápis de cor na mesma mão
fechada não porque represente barafunda mas porque o rigor e a paciência de
representar em desenhos qualquer coisa em que a cabeça pense é um luxo dos
adultos, como uma criança que, em suma, brinca porque pode, Herberto Helder põe
em verso, escrevendo a brincar, o que lhe vem à cabeça, quer as palavras
queiram dizer alguma coisa, quer não queiram. Enquanto brincadeira, é saudável;
como poesia, é ilegível.
Um homem levado pela mão de uma criança, o modo singelo de designar quem é
bêbedo, tal como famosamente pronunciado por Heraclito, é afinal aplicável
também a poetas. Quem tiver estado atento, sabe contudo que a comparação entre
quem é poeta e quem é bêbedo já tinha sido insinuada, algumas linhas antes. Se
antes o fora porque se pusera a hipótese de a poesia ser coisa que acontece
quando o poeta não está na plena posse das suas faculdades, agora é-o porque o
raciocínio, imune a hipóteses e a tolices, assim quis que fosse. Como um bêbedo
e como uma criança tolinha, Herberto Helder não sabe o que diz. E talvez nem
lhe interesse. Comprova-o analiticamente tudo o que já foi dito e literalmente
o que o próprio poeta diz em dois versos da quinta parte de Poemacto: “penso: o mundo é húmido. Não
sei / o que quer dizer”. Não sabe Herberto Helder e não sabe ninguém. Dirão
alguns, que mais deram em papalvos pelo que foram aprendendo na vida do que
pelo que eram de nascença, que não é suposto saber-se, que a poesia não tem que
querer dizer alguma coisa, que é a linguagem no seu estado puro e outras patetices
de quem descobriu um dia que ser esperto depende apenas de ter a esperteza de
assegurar aos outros que o é. Perante este tipo de objecções, cabe perguntar:
então para quê falar ainda?
(Continua…)
1 comentário:
O unanimismo dos louvaminheiros do Herberto Hélder é nauseante e estéril, mas não é menos enjoativa e vazia a má-língua envolta em escolástica do Álvaro da Horta.
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