II – A CRIANÇA TOLINHA E A PUBERDADE
Diz-se algures, numa parte do mundo que só importaria saber qual era se
alguma coisa importasse, que uma criança tolinha só dá em poeta se ao gugu dadá
com que escreve o primeiro poema lhe responder quem lho ler com o gugu dadá de
volta que o incentiva a escrever o segundo. Quando a criança tolinha que
Herberto Helder é – e que o seja foi retrato que os pincéis do raciocínio
deixaram pintado no primeiro texto – escreveu o seu primeiro poema, qualquer
criança tolinha lhe terá dito, portanto, que continuasse a ser criança e a ser
tolinho. Assim encorajado, deu pois em continuar. O segundo, o terceiro e o
quarto poema devem ter excitado tanto as partes às crianças tolinhas a quem os
deu a ler como o primeiro, pois não tardou que fosse aclamado por uma multidão
delas. E em pouco tempo, por qualquer razão que estará escrita onde estiver
escrito o mistério de tudo, tínhamos uma criança tolinha laureada e um meio
literário de crianças tolinhas aos berros, pedindo mais poemas com que,
humedecendo-as, pudessem dar lubrificação à berraria por que mantêm a fama.
Dirão os mais difíceis de convencer que falta a quem vê no poeta uma
criança tolinha a sensibilidade de poeta que lhe permitisse ver nele outra
coisa. É possível que acerte no que diz quem assim disser. Diga-se porém,
contradizendo o que desse jeito for dito, que, não lhe faltando essa
sensibilidade, seria poeta quem assim vê e não crítico. E um crítico, não
ligando a sensibilidades, nem sequer às sensibilidades berradas dos poetas, vê
as coisas como elas devem ser vistas, através da lente exacta da análise
crítica. Se outros, mais sensíveis, vêem nas coisas outras coisas ou coisas que
as coisas não têm, pois bem, cá estará quem vê bem para recomendar que se
esfreguem os olhos até se enxergar como deve ser, se o problema for da vista,
ou para indicar o manicómio, se não for. Veja-se como é de uma dessas duas
gentilezas que precisam Herberto Helder e os leitores que lhe apreciam as tolices
a que por condescendência se chamam versos lendo o que é dito em “O Poema”,
ainda no volume de 1961, A Colher na Boca.
Para não maçar em demasia, eis apenas a primeira estrofe:
Um poema cresce
inseguramente
Na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só
ferocidade e gosto,
Talvez como sangue
Ou sombra de sangue pelos
canais do ser.
Para aqueles que, por amamentação cuidada ou por outro privilégio inicial
qualquer, são mais dados à esperteza, o poema começa com aquilo que parece ser
a descrição do impulso que qualquer poeta, sentando-se à mesa para escrever,
alegadamente sente instantes antes de rabiscar sem pejo os primeiros versos.
Dando, pois, expressão à crença de que há coisas a subir dentro de poetas antes
de haver versos a descer no papel, de que coisas “sem palavras” se transformam
em coisas com palavras por obra do milagre de haver um pulso que assim as
transforme obedientemente, Herberto Helder caracteriza os momentos que precedem
o parto de um poema através da comparação com canais dentro dos quais sobe
“sangue / ou sombra de sangue”. Mais ainda, é com “ferocidade e gosto” que se
dá essa subida. Junte-se agora à mistura de haver sangue a irrigar canais com o
prazer que isso causa, só por si já suspeita, a primeira declaração do poema, a
de que “cresce inseguramente” o que quer que cresça, assim como a segunda, a de
que é “na confusão da carne” que isso cresce, e ficar-se-á esclarecido,
desvendando-se a obscuridade pelo exercício da atenção às palavras, de que não
é um impulso para escrever que o poeta sente, como tudo levava a crer, mas
antes um impulso para tirar a roupa. Note-se, a confirmá-lo, quer o que
acontece mais à frente ao poema, que “cresce tomando tudo no seu regaço” e se
faz “contra a carne e o tempo”, quer sobretudo a informação de que “em baixo o
instrumento perplexo ignora / a espinha do mistério”. Assim se prova tudo o que
foi dito de Herberto Helder no primeiro texto e no que de verdadeiro este já
leva: aceitará qualquer adulto, rindo-se talvez um pouco, que uma criança se
assuste ao tomar conhecimento da autonomia e da coragem com que se levanta a
sua intimidade; só uma criança tolinha, porém, tomaria a puberdade por poesia.
Não se confunda quem, como o poeta, seja dado a confusões: não é por ter
confundido uma vez o que crianças normais não confundem que a poesia de Herberto
Helder não merece a leitura, mas por, assim confundido, fazer poesia sempre que
a natureza, chamando a atenção através das carnes hirtas, lhe pede que faça
outra coisa. Do mesmo modo que lhe saem atoleimados os poemas por confundir
apetites, parece ser, de resto, por obra e graça desta confusão peculiar que
não sabe pousar beijos onde é mister que os pouse, como se percebe em “Amor em
visita”. Das várias partes do corpo da “jovem mulher com sua harpa de sombra /
e seu arbusto de sangue” a quem se refere nesse poema, o poeta escolhe beijar
os “ombros”, por duas vezes, os “olhos” e, por fim, talvez frustrando de vez as
expectativas da parceira, “o degrau e o espaço”. Tal como não sabe o que fazer
com palavras, Herberto Helder não é, pois, muito prestável como amante.
Note-se, aliás, comparando essa mulher mal beijada àquela de que fala na
quinta secção de “As Musas Cegas”, a estranha perversão que há em cismar com
mulheres menstruadas. À rapariga do “arbusto de sangue” do primeiro poema
segue-se assim uma mulher a quem o poeta parece mostrar melhores talentos
amorosos: “vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue, / acendo-lhe as
falangetas, / faço um ruído tombado na harmonia das vísceras”. Aos que carregam
o sobrolho, desconfiando que descontextualizo e calunio, bastará talvez lembrar
que, na terceira secção do poema “Lugar”, em Lugar (1962), no momento em que, pouco depois de afirmar que as
mulheres “alagam a inteligência do poema com o sangue menstrual”, o poeta
confessa que “as mulheres de ofício cantante”, não por acaso o título escolhido
para editar a sua poesia completa, mostram a Deus “a boca e o ânus / e a mão
vermelha lavrada sobre o sexo”. Ou então, não bastando o que deveria bastar,
lembre-se que, em A Máquina Lírica (1964),
Herberto Helder haveria de dedicar à mesma perversão um poema chamado “A
menstruação quando na cidade passava”.
Diga-se, juntando os indícios das confusões e das perversões como um
detective a quem pedissem para esclarecer um crime, que é essencialmente em
confundir e em perverter os outros que Herberto Helder se empenha. É o que o
próprio, aliás, confessa, no segundo verso da segunda parte de Poemacto: “Eu procuro dizer como tudo é
outra coisa”. Fazer poesia – eis a confusão suprema desta criança tolinha – é o
mesmo que fazer birra. Também em Poemacto,
mas na quarta parte, diz que pode “mudar a arquitectura de uma palavra”,
insistindo na birra como criança a quem mostrassem, não convencendo, que um limão
não é uma laranja. Esta atitude autoritária face ao vocabulário não é original,
no entanto, e o poeta bem podia ter dito, como o disse de facto o Humpty Dumpty
que primeiro o disse, que, quando usa uma palavra, ela significa apenas aquilo
que decide que ela significa. É até espantoso, depois de verificado de onde
procede maravilhosamente a inspiração para a birra, que a sonoridade dos dois
nomes pelos quais o poeta é conhecido seja, como no caso do tiraninho original,
muito parecida. Mas para quê embirrar? Segundo a oitava parte de “As Musas
Cegas”, para tornar obscuro o que antes era compreensível: aí diz Herberto
Helder, sem a obscuridade deliberada que noutros sítios impede que se saiba o
que balbucia, que a sua “tarefa inquieta” não é outra que não a de “pôr a vida
/ na sua oculta loucura”.
Uma criança tolinha, com cabeça de
ovo, estava sentada num muro quando, sentindo qualquer coisa a crescer onde há
coisas que em certas idades amiúde crescem, decidiu começar a escrever poeminhas;
não satisfeito, pois não há poema que faça o que só a insistente fricção da
carne pode fazer, continuou a tentar amansar a fera, sempre sentado no mesmo
muro de antes, com o remédio errado da poesia, mais fazendo estalar o chicote
que a provoca, portanto, do que lhe conseguindo a obediência; ganhando vergonha
ao inchaço e não sabendo que outras pomadas esfregar, terá percebido a criança
tolinha, a dada altura, que mais valia usar a poesia para escondê-lo do que
para tratá-lo; e assim, cada vez mais inflamado, deu em dificultar a
inteligibilidade do que diz para que, distraídos pela obscuridade, não
reparassem os leitores na saliência da sua vocação. É isto, e não muito mais do
que isto, que importa conhecer da biografia de Herberto Helder para lhe
perceber a poesia.
Não é, por isso, acidental que, no mesmo poema em que, ao afirmar que
procura dizer “como tudo é outra coisa”, o poeta dá testemunho de fazer poesia
por embirração, confidencie que possui “uma vida com furibunda melancolia”. Herberto
Helder é como é, a saber, uma criança tolinha que embirrou em fazer poesia que
não se percebe, porque a sua vida é melancólica e furibunda, isto é, porque tal
vida se caracteriza por uma vontade furibunda que, não sabendo satisfazer, o
deixa melancólico. Assim se explica também a constante celebração da loucura. Essa
loucura que, abismado, diz ser uma “coisa forte”, no primeiro poema de Poemacto, é simultaneamente o calor que
o domina e aquilo a que, justamente por ser incapaz de dominá-lo, mais aspira.
Encalorado e incapaz de refrescar-se, Herberto Helder decidiu, pois, ceder às
altas temperaturas que primeiramente o incomodavam, e tornou-se num poeta que
vai para a praia de propósito apanhar escaldões; ao contrário de gente vulgar,
que evita o excesso do sol estendendo a toalha à sombra e que corrige acessos
de loucura acalmando-se, a criança tolinha que é alimenta-se do calor e da
loucura que a perturbam.
Daí que deseje, como o deseja, por exemplo, na terceira parte de “O Poema”,
que o seu coração caia “numa espécie de extática e sagrada loucura” ou que
fique “profundamente louco”. Como qualquer criança em quem as birras compensam
e que, não sendo capaz de contrariar a decisão adulta com que lhe guardam o
brinquedo na hora de ir para a mesa, desata a gritar mais para que lhe devolvam
o brinquedo do que propriamente por não ter fome, também Herberto Helder
desatou a fazer poesia gritada mais por ser criança que grita do que por ser
poeta. É isso que quer dizer, no fundo, quando revela o seguinte, em “Narração
de um homem em Maio”, o último poema de A
Colher na Boca: “não tenho inocência, mas o dom de toda uma inocência”.
Herberto Helder não é criança por ser inocente, como as crianças são, mas por
ter o dom de ser criança. É esse dom que toda a sua poesia, mais ou menos
frontalmente, reclama, e é dele que fala, mesmo que não falando, a dada altura
na quinta parte de “Elegia Múltipla”:
Não se canta e floresce.
Ninguém
Amadurece no meio da sua
vida.
Toca-se lentamente uma parte
suspensa do corpo,
E a alta tristeza purifica
os dedos.
Porque um homem não é uma
canção fria ou
Uma roseira. Não
É um fruto como entre folhas
inspiradoras.
A teoria que estes setes versos condensam, aproveitando como contraste a
imagem de uma árvore cujo fruto resulta de um processo de amadurecimento, é a
de que o homem não adquire o dom do canto cantando. Cantar, assim diz o
primeiro verso, não conduz a florescer, e só amadurece realmente quem já tiver
nascido maduro. Por palavras menos fiéis aos versos de que procedem, o que está
a ser sugerido é que fazer poesia é coisa que não se pode aprender a fazer. A
teoria, uma vez mais, é a de que o poeta é uma criatura inspirada, o que aliás
justifica o dom de ser criança de que se falava ainda agora. Diga-se, porém, o
que ainda não se disse: que acreditar que todos os esforços são vãos, que nada
há que um poeta possa fazer para merecer a inspiração, que grandes poetas são
homens a quem, por qualquer motivo inescrutável, aconteceu que o fossem, é
sobretudo conversa de quem é preguiçoso ou medíocre. Herberto Helder, como
qualquer poeta medíocre, ou como qualquer criança preguiçosa, acredita que é
especial. E é por acreditar nisso que nunca se esforçou por ser outra coisa,
nomeadamente poeta.
Que Herberto Helder se crê o Moisés das letras nacionais dá conta, de
resto, o que o próprio frequentemente diz de si ou do que faz. A quinta parte
de “As Musas Cegas” começa com a afirmação de que “esta linguagem é pura”; na
quinta e última parte de Poemacto,
lembra a sua “grande vida pura”; e na quarta secção de “Teoria Sentada”, em Lugar, é com despudor que se considera,
não fosse alguém não desconfiar de que a pureza é coisa que o distingue, “o
mais puro dos cantores”. Noutros tempos, tamanha hybris era coisa que os deuses não toleravam. Herberto Helder
acredita que é especial, que tem um dom, que esse dom faz com que seja puro ou
inocente como uma criança, e que fazer poesia é obedecer à pureza, à inocência
ou a criancice que alegadamente o constitui.
Como exemplarmente demonstrado no texto de que este é a continuação, é por
acreditar neste género de disparates que os seus poemas são, salvo melhor
descrição, os destroços de um navio sem lastro a cujo leme se deixou
imprudentemente uma criança. Não tendo insistido na mesma metáfora, acrescentou
este segundo texto a esse facto notável o segundo facto notável, também
exemplarmente demonstrado, de não ser pela vocação para a poesia, como julga
Herberto Helder, que lhe cresce dentro das calças o que, além de envergonhá-lo,
o deixa melancólico e furibundo, mas por uma outra vocação que as pessoas
geralmente resolvem sem dificuldades, sozinhas ou acompanhadas. O mesmo é
demonstrável, para os que ainda não foram persuadidos, pelos dois versos que
deixei por comentar na teoria dos dons que ainda agora citei. É que a teoria
não se resume à ideia negativa de que o dom poético é algo que não pode
amadurecer no homem; a ela se junta uma ideia de sentido inverso, a de que o
poeta exerce o dom por cujo amadurecimento não é responsável quando toca
“lentamente uma parte suspensa do corpo”. Só seria impossível tornar mais
evidente que Herberto Helder confunde aquilo que tenho estado a dizer que
confunde se, por qualquer razão, não tivesse o poeta decidido acrescentar que a
esse toque lento numa certa parte do corpo suspensa se segue “a alta tristeza”
que “purifica os dedos”.
Assim se confirma uma coisa, se percebe melhor outra e se desmente uma
última. Havendo qualquer coisa a purificar os dedos que resulta de o poeta
tocar lentamente numa parte do corpo suspensa, confirma-se a confusão;
tomando-se por dom o que assim resulta do toque lento numa parte do corpo que
se suspende independentemente da vontade daquele a que pertence, percebe-se
melhor por que razão considera o poeta que esse dom não seja coisa que se
aprende a fazer crescer; e havendo afinal conhecimento da purificação,
desmente-se a hipótese, levantada atrás precisamente para justificar tão
inusitada confusão, de Herberto Helder nunca ter saciado, por não saber como
fazê-lo, certas vontades naturais. Feito o desmentido e desculpando-me pela
precipitação, devo dizer, contudo, que nunca tê-las saciado, como supunha, de
algum modo perdoava essa confusão. De outro modo, como afinal se verifica, Herberto
Helder não tem perdão.
Como criança tolinha a quem se ensina a tabuada, Herberto Helder parece então
saber e não saber, em simultâneo, as leis da multiplicação. Tal como falhasse
todas as contas que levasse para fazer em casa no papel quadriculado do seu
caderno, não falhando, porém, quando em sala de aula, sob ameaça de uma ou
outra palmada, o chamassem ao quadro para as resolver, Herberto Helder só
parece confundir a puberdade com a poesia em certas ocasiões. É possível,
portanto, que a sua tolice proceda sobretudo da desatenção e da preguiça, e que
a mediocridade dos poemas que faz à pressa, como deveres de casa feitos a
pensar nas brincadeiras solitárias a que ainda pode dedicar-se antes da hora de
jantar ou nas raparigas que se divertem sem ele saltando à corda lá fora, melhor
se explique por não ter tido professor que, dando em corrigi-los na aula
seguinte, de pronto lhos riscasse e os mandasse repetir.
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